No Nono Bolsão do Oitavo Círculo do Inferno, da Commedia de Dante, estão os semeadores de discórdia, num desdobramento do Bolsão anterior, onde se encontram os maus conselheiros, estabelecendo não só uma ligação entre os dois sítios, como uma completude do assunto, tendo em vista que os maus conselhos visam, na sua origem, a semeadura da cizânia.
Ao saírem do Oitavo Bolsão (Canto XXVII) e chegarem ao Nono (Canto XXVIII), Dante e Virgílio testemunham uma cena que bem pode justificar a existência posterior do adjetivo dantesco... O número dos condenados, punidos com a mutilação é muito maior, diz Dante, do que se se juntassem os mutilados em várias guerras, tomadas como exemplo, no início do Canto. O aspecto repugnante do Nono Bolsão (il modo de la nona bolgia sozzo, verso 21) é digno do horresco referens! de Eneias, no Livro II da Eneida (verso 204), ao narrar as serpentes saindo do mar, para sufocar e matar Laocoonte e seus dois filhos.
Há, neste Canto XXVIII, uma introdução, constituída pelos 21 primeiros versos, que funciona como um misto de proposição e invocação, mas sutilmente tecida, de modo que o leitor, se quiser absorver o seu conteúdo, deverá se demorar na sua leitura. E, a depender de seu horizonte de expectativa, ele vai descobrir o tecido original, de onde partiu a composição dos versos iniciais.
Para a surpresa de muitos leitores, afirmo que Dante inicia o Canto XXVIII fazendo uma alusão a Homero, tomando como base o Canto II da Ilíada, no qual se encontra a segunda Invocação do poema (484-493), com o intuito de dar início ao famoso Catálogo dos Heróis e das Naus (494-779/85). Embora não exista, nesse momento, no texto de Dante, nenhum chamamento às Musas, como há em Homero, o sentido é semelhante: é impossível para uma boca ou um peito humano narrar o acontecido. Para Homero, a grande quantidade de heróis Argivos (nome dados aos gregos), em exaltação; para Dante, a grande quantidade de condenados, em mutilação. Para Homero, o louvor perpétuo do heroísmo vitorioso; para Dante, o horror eterno da torpe condenação. Para o louvor, que deverá chegar ao Olimpo, Homero invoca todas as Musas, diferentemente do que ocorre na primeira Invocação do poema (Canto I, verso 1-2), em que apenas uma delas, Calíope, dissimulada sob o nome de Deusa (θεά), é invocada. Para o horror, Dante invoca o ser humano, a quem se dirige a moral de sua obra.
Vê-se, portanto, que são processos semelhantes de construção, com intenções, contudo, diferentes, apontando para a impossibilidade de se dizer algo cuja natureza é impossível de ser reproduzida pela palavra oral ou escrita. Algo que só poderá transmitir a sua grandiosidade heroica ou a vileza do seu horror, com o testemunho dos olhos. O paralelismo é inquestionável.
No caso do Canto XXVIII, tendo o horror como contraponto ao louvor homérico, Dante reúne várias guerras históricas, com seus muitos mortos, cujo intuito é comparar a carnificina acontecida com a visão horrífica que ele tem dos condenados nesse bolsão do inferno. Parece-nos ser com esse propósito que ele invoca implicitamente Homero, tendo em vista que o poeta grego nos dará, ao longo da Ilíada, uma visão cruenta da guerra, com os muitos detalhes das feridas mortais provocadas pelo embate entre gregos e troianos, cujas batalhas se estendem do Canto IV ao XXII. É só verificar.
Dante começa citando a batalha de Canas, acontecida em 216 a. C., por ocasião da Segunda Guerra Púnica, envolvendo Roma e Cartago, pelo controle do Mediterrâneo e da África do Norte. A batalha de Canas teve um resultado desesperador para Roma, com uma derrota acachapante, que Roma só experimentaria novamente, em 9 a. C., contra os germanos, na famosa batalha de Teutoburgo, levando Augusto ao desespero. O historiador Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.), citado por Dante (verso 12) relata que só dos anéis dos romanos mortos foram juntados altos espólios (che de l’anella fé sì alte spoglie, verso 11). Dante ainda se refere ao ardor de Cúrio, tribuno de Pompeu, aconselhando César à travessia do Rubicão, cujo resultado é mais uma guerra civil em Roma (Curïo, ch’a dir fu così ardito!, verso 102)
Vêm, em seguida, mais duas batalhas. Dante se refere ao combate de Roberto Guiscardo contra os bizantinos, em Ceprano, região da Apúlia, em 1040, e aos embates de Alardo (Erard de Vallery), vencedor da batalha de Tagliacozzo, em 1265, sem omitir Mosca de Lamberti, cujos conselhos, má semente para a gente toscana (che fu mal seme per la gente tosca, versos 106-108), levam as famílias florentinas Buondelmonte e Amadei a lutarem, constituindo a origem da divisão violenta entre guelfos e gibelinos, tema onipresente no Inferno.
Todas essas guerras seriam ainda insuficientes para dar uma ideia do que ele, Dante, testemunha, no bolsão de aspecto repugnante.
Repetimos que palavras não conseguem exprimir a visão dos fatos, embora os poetas e ficcionistas de modo geral tenham meios estilísticos de materializar, de certa forma, o acontecido. Assim é que nada melhor do que a alusão implícita a Homero, para preparar o leitor com relação ao espanto que ele terá com a descrição dos condenados, na sua mutilação.
São importantes para essa compreensão, as metáforas do fogo e da cisão, que unem, mais uma vez, os condenados do Oitavo e do Nono Bolsão, os consumidos eternamente pelo fogo, por seus maus conselhos, e os cindidos pela espada afiada do demônio (al taglio de la spada, verso 38), por semearem a discórdia, respectivamente. O fogo, como elemento purificador, envolverá ad aeternum os que, com seus maus conselhos, lançaram no fogo os que os seguiram.
Já a metáfora da espada, como meio de provocar a cisão no condenado, é um recurso mais explicitamente bíblico. Quando Jesus é preso no Horto das Oliveiras, um dos apóstolos corta a orelha de um dos guardas com uma espada. Jesus coloca a orelha do soldado no lugar e adverte-o de que quem ferir pela espada, pela espada será ferido (Mateus, 26, 51-52). Desse modo, os condenados serão cindidos pela espada do demônio, que os atinge sempre, por estarem numa fila sempre retornando ao início do martírio, assim que as feridas são cicatrizadas.
A última visão é estarrecedora. Bertrand de Born (1140-1215), poeta inglês, trovador provençal de fama aparece com a cabeça decepada nas mãos a servir-lhe de lanterna, punição por ter lançado a discórdia entre pai e filho, o rei Henrique II da Inglaterra e o seu filho Henrique, o herdeiro, futuro rei. Eis a força estilística, para, com palavras, minimizar a falta da visão: a separação violenta de pai e filho terá o seu equivalente metafórico, na separação do cabeça (pai), com relação aos membros (filho).
Aos poucos, o leitor vai constatando a importância da descida de Dante ao inferno. Não se trata apenas de ficção, em busca de um prazer estético. Os recursos estilísticos vão além do meramente ficcional, assumindo um aspecto moral. Vê-se isso nos exemplos de punição apresentados ao leitor, tanto quanto no modo como eles são formalmente expressos em linguagem chula, um dos pilares do vulgar (no sentido de comum), língua da Commedia, que ajuda a construir o nome do seu poema. Maomé, o criador do Islamismo, é mostrado cindido ao meio, com as vísceras expostas, de cima abaixo, e com o intestino grosso à mostra (versos 24-27). Por outro lado, Ali, seu primo e genro, o primeiro a seguir suas ideias separatistas, será apresentado com uma cisão que vai do queixo à cabeça. Se o cerne separatista está em Maomé, que suas vísceras sejam expostas; se o continuador e apóstolo do profeta é Ali, que seja fendida a sua face, da boca à cabeça, atingindo o pensamento e a fala.
Não se pode desprezar esse veio moral na Divina Comédia, confirmação de que o cerne do Inferno é o Mito de Er. Assim como o personagem platônico da República, Dante desce ao inferno para ganhar experiência plena, não para ser atormentado com penas pelo que fez, quando vivo. Esta é a resposta de Virgílio a Maomé, a respeito do porquê de Dante estar ali (versos 46-51, tradução operacional nossa):
“Nem a morte ainda o atingiu, nem a culpa o leva”,
respondeu o meu mestre, “a atormentá-lo;
mas para lhe dar experiência plena,
a mim, que estou morto, convém levá-lo
inferno abaixo, de círculo em círculo.”