Talvez a maior preocupação de quem tem livros e os guarda e preserva amorosamente seja o destino deles quando já não se estiver aqui para deles cuidar. O temeroso “day after” de toda biblioteca particular, seja ela grande ou pequena. Chego a imaginar que os livros devem pensar sobre essa previsível e incontornável ausência do dono e suas consequências para eles. O mesmo imagino em relação aos animais de estimação. O que será de mim quando aquele ou aquela que me ama desaparecer? Esta é a pergunta que, em minha imaginação, paira no ar.
No caso dos animais, se não chegam a pensar, talvez “sintam” esse medo. Cachorros e gatos surpreendem.
Cães, gatos e outros bichos domésticos, na maioria dos casos, são herdados por alguém (familiares, amigos etc.) que deles passa a se ocupar. Quanto aos livros, geralmente acontece o contrário: ficam não apenas órfãos, mas também abandonados: ninguém ou quase ninguém quer ficar com eles, seja por falta de gosto, de espaço ou outra razão. Alguém já disse, não sei se brincando ou a sério, que os maiores inimigos das bibliotecas não são os cupins, mas as viúvas. Há um pouco de verdade nesta afirmação, sabemos, pois é o que costumamos testemunhar. A propósito, já escrevi contando uma experiência que tive no sebo do falecido Pontes, então na rua Visconde de Pelotas, há muitos anos, mas repeti-la não faz mal. Estava eu no prazeroso exercício da busca aleatória de algum livro do meu interesse, quando me deparei com um volume da primeira edição de O Nariz do Morto, de Antonio Carlos Villaça, com dedicatória do autor a conhecido intelectual local, falecido há pouco tempo. Imediatamente pensei: “Mas já desfizeram a biblioteca do mestre?”. Comprei o exemplar, mandei encadernar em couro e vez em quando o apanho na estante para tocá-lo, contemplá-lo e eventualmente ler. E assim com várias outras obras por mim adotadas como filhos queridos.
O fato é que a orfandade dos livros constitui um fenômeno universal. O livreiro Shaun Bythell, dono da maior livraria de livros usados da Escócia, conta o seguinte em sua saborosa obra O Diário de um Livreiro (Editora Principis, Jandira, SP, 2023): “Muitas negociações de livros começam com alguém completamente desconhecido ligando e explicando que um familiar faleceu recentemente e que precisam se desfazer dos livros que pertenciam à pessoa. Compreensivelmente ainda estão de luto, e é quase impossível não se deixar levar pela tristeza. Examinar, folhear e separar os livros da pessoa que faleceu possibilita ter uma noção de quem a pessoa era, de seus interesses e, até certo ponto, de sua personalidade”. É mais ou menos assim, sabe-se. Dessa afirmação do livreiro, quero destacar o seguinte para a reflexão do leitor: primeiro, a rapidez com que os familiares em questão desejam se desfazer dos livros da pessoa recentemente falecida; segundo, a crueza da expressão “se desfazer”, empregada para designar a venda dos referidos livros. No dicionário, a palavra “desfazer” é sinônimo, entre outros, de destruir, dissolver, anular, dissipar e depreciar. Para mim, é algo parecido com isso o que fazem aqueles que logo passam adiante a livraria do(a) que se foi; e terceiro, a raridade do compartilhamento da suposta tristeza dos familiares por parte do livreiro, já que a maioria dos profissionais desse ofício não possui ou não se permite a nobreza de tal sentimento humanitário.
Entretanto, não joguemos precipitadas pedras nas viúvas e familiares de falecidos bibliófilos. Nem todos são insensíveis nem desnaturados. Cada qual tem seus motivos, mais ou menos justificáveis. Mas que faz pena, faz. Ver centenas e até milhares de volumes amorosamente colecionados ao longo da existência de alguém geralmente vendidos a preço de banana e até mesmo doados a quem se dispuser a simplesmente levá-los para longe. E o pior é que no meio desses livros banalmente descartados não raro se encontram valiosas raridades, das quais nem desconfiam os incultos herdeiros.
Às vezes pergunto, se a intimidade permite, o que algum amigo bibliófilo já pensou no destino póstero de sua biblioteca. O que será feito, por exemplo, com os mais de vinte mil volumes do crítico e poeta Hildeberto Barbosa Filho. Idem relativamente aos livros de Mirabeau Dias. E assim por diante. Mas evidentemente que são poucos esses amantes dos livros. Até o momento, esses amigos não têm resposta para a minha talvez impertinente indagação. Todavia, creio, já é tempo para refletirem a respeito.
Infelizmente, nem todos os colecionadores têm as privilegiadas condições de um José Mindlin, o paulista que ainda em vida repassou suas maiores preciosidades à Universidade de São Paulo, instituição que, por sua vez, construiu um prédio adequado e exclusivo para receber e cuidar do tesouro, colocando-o à disposição dos estudiosos.
Aqui na aldeia certamente são pouquíssimas as entidades capazes de receber acervos bibliográficos. Os exemplos de que tenho notícia são desanimadores. Seria o caso de os poderes públicos criarem orfanatos para livros? Sem dúvida. Mas estarão eles também criando orfanatos para crianças? Duvido.