Esses dias eu estava rolando o feed do Instagram quando o algoritmo me sugeriu um post de Tsuyoshi Yamaguchi, também conhecido como Guti (@ola_guti), um influenciador japonês que é apaixonado pela cultura brasileira. No post em questão, Guti aparecia tocando triângulo acompanhando uma banda de forró nipônica. O grupo entoou as clássicas “Xote das Meninas”, de Zé Dantas, e “Asa Branca”, de Humberto Teixeira – ambas eternizadas na voz de Luiz Gonzaga.
O interesse dos japoneses pela música brasileira, no entanto, não é algo novo. Um dos primeiros a verter nossas canções para a língua nipônica foi Kikuo Furuno. Ele aportou por aqui em 1937 – 29 anos depois que os primeiros imigrantes japoneses chegaram ao Brasil para trabalhar nas fazendas de café, em 1908. O jornalista Domingos Lucca Jr. fez um perfil de Furuno na reportagem “Puccini no chinelo: Butterfly passou-se para o samba e o baião”(1), ilustrada com fotos de José Vieira, e publicada no 3º número da revista Manchete, de 10 de maio de 1952.
Conforme Domingos Lucca Jr. registrou na reportagem, Furuno era professor de Literatura Francesa, formado pela Universidade de Waseda, em Tóquio – uma das instituições de ensino superior mais tradicionais e prestigiadas do Japão. Sua “inteligência viva e o cabedal de conhecimentos que adquiriu nas escolas de sua terra, dele fizeram um bom estatístico”. Isso fez com que Furuno fosse admitido no departamento de estatística do Yokohama Shokin, um banco nipo-brasileiro localizado no Rio de Janeiro, a então Capital Federal. Conciliando “a insipidez metódica e mecânica da matemática com a fertilidade de sua imaginação de poeta”, Furuno pôde garantir seu sustento e de sua esposa, aproveitando as horas vagas para estudar literatura brasileira, atividade à qual vinha se dedicando desde a Segunda Grande Guerra.
No banco, Furuno conheceu o nissei(2) João Matsumoto, bacharel em Ciências Econômicas e perito-contador, que também tinha muito interesse pela cultura brasileira. Juntos, Furuno e Matsumoto iniciaram uma série de traduções de poesias, músicas, contos e romances brasileiros que foram penetrando em Tóquio e de lá sendo distribuídas para o resto do país. A intenção da dupla era “fazer com que os japoneses do arquipélago se inteirassem da vida brasileira e que a amizade nascida com a vinda dos colonos para cá fosse fortificada”.
Na reportagem, Domingos Lucca Jr. enumerou algumas traduções empreendidas pela dupla Furuno/Matsumoto: poesias de Guilherme de Almeida, Cecília Meirelles e Manuel Bandeira; o conto “O Comprador de Fazendas”, de Monteiro Lobato; “Felicidade”, de Lygia Fagundes Telles; e o best-seller de Mario Donato, “Presença de Anita”.
Quanto às músicas, três que foram traduzidas por Furuno fizeram muito sucesso no Japão: os baiões “Paraíba” (パライーバ) e “Baião de Dois” (バイヨン踊り), ambos de Humberto Teixeira, interpretados por Luiz Gonzaga; e o samba-canção “Vingança” (復讐(ヴィンガンサ), de Lupicínio Rodrigues. Grande parte do êxito se deveu à interpretação de Keiko Ikuta, vedete do Teatro Nippon, de Tóquio, que veio ao Brasil em 1951 para realizar uma série de recitais para a colônia japonesa, quando conheceu Kikuo Furuno.
A estrela da “terra do sol nascente”
Keiko Ikuta, nome artístico de Yaeko Iwasaki, nasceu em Tóquio em 1928. Ela iniciou sua carreira em 1949 na Takarazuka Revue, uma trupe de ópera composta inteiramente por moças solteiras. Dois anos depois, em 1951, ela veio ao Brasil como parte de um grupo de artistas liderado pelo cantor Akira Matsudaira. Domingos Lucca Jr. sublinhou que Keiko, então com 24 anos, era “lindíssima”, “dona de uma plástica maravilhosa e de um palminho de rosto capaz de gerar uma sangrenta guerra entre o oriente e o ocidente”.
Quando foi apresentada a Kikuo Furuno, Keiko revelou a intenção de gravar algumas músicas brasileiras para lançar em Tóquio. Ela tinha ouvido falar da beleza dos ritmos do Brasil e queria que seus compatriotas os conhecessem.
Bem ao estilo do Jornalismo Literário, Domingos Lucca Jr. descreveu a reação de Kikuo Furuno ao pedido de Keiko:
“Furuno saiu contente da entrevista. Não se importou com a garoa gélida que lhe fustigava a face e nem com o friozinho cortante que lhe penetrava os ossos. Foi para casa mas não dormiu. Havia muitos problemas e tudo teria que ser feito rapidamente. Com tempo marcado, nunca havia feito uma tradução, sequer. Queimou as pestanas nos grossos volumes de Cândido de Figueiredo e do Lello Universal, mas, ao cabo de curto espaço de tempo, voltou a falar com a linda patrícia.
⏤ Aqui estão as músicas. Escolhi dois baiões e um samba, que está muito em voga.
Keiko pegou as músicas e ficou encantada com as letras, após Furuno lhe explicar o que era mandacaru, ribatã e outras coisas mais, que o Japão desconhece. Explicou, também, o que era baião e que estava em moda no Brasil. A vedeta do teatro Nippon ensaiou e, dentro em breve, brindava os japoneses do Brasil e do Japão com as lindas gravações que conhecemos”.
⏤ Aqui estão as músicas. Escolhi dois baiões e um samba, que está muito em voga.
Keiko pegou as músicas e ficou encantada com as letras, após Furuno lhe explicar o que era mandacaru, ribatã e outras coisas mais, que o Japão desconhece. Explicou, também, o que era baião e que estava em moda no Brasil. A vedeta do teatro Nippon ensaiou e, dentro em breve, brindava os japoneses do Brasil e do Japão com as lindas gravações que conhecemos”.
Keiko Ikuta gravou as músicas pela RCA Victor, do Rio de Janeiro, orientada pelo próprio Luiz Gonzaga, e acompanhada por Canhoto e seu Regional(3). Dessa forma, Keiko se tornou a primeira japonesa a fazer gravações no Brasil. Na internet podemos encontrar a capa do disco original, onde aparecem gravados os nomes de Humberto Teixeira, Luiz Gonzaga e “K. Furuno”.
Domingos Lucca Jr. revelou que Furuno recebeu “dois mil míseros cruzeiros” pelo “relevante serviço que acabava de prestar à política de boa vizinhança”, confirmando que “literatura não dá camisa a ninguém, no Brasil”. Ainda assim, Furuno ficou realizado com a contribuição que havia dado:
“Estou satisfeito. Você compreende o que isso significa para mim. Vivo no Brasil e é aqui que tenho família e ganho para seu sustento. Sinto-me feliz em poder difundir a música e a literatura brasileira em meu país de origem, pois sinto que aqui encontrei uma segunda pátria. Aliás, estou escrevendo um livro sôbre [sic.] o Brasil para editar no Japão”.
O livro em questão só sairia 12 anos depois, em 1964, com o título “Burajiria e no 500 nen” (500 anos até Brasília), publicado pela Livraria Imperial de Tóquio, em dois volumes (4).
Na Estante Virtual podemos encontrar algumas obras traduzidas por Furuno, como “Lendas da Ásia Oriental”, “Numa Campina Verde-mar Distante”, “Contos Japoneses” e “Lendas do Japão”. Já no Discografia Brasileira estão disponíveis algumas das canções que ele verteu para o japonês. Furuno morreu em 1989, aos 82 anos.Depois de voltar para o Japão em 1952, Keiko Ikuta ficou conhecida como “A Alegre Filha do Baião”, dada a onda de popularidade do ritmo no país. “Paraíba”, “Baião de Dois” e “Vingança” fizeram tanto sucesso na “terra do sol nascente” que Keiko encomendou outras traduções a Furuno, como “A Dança da Moda” (踊れバイヨン), de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, gravada pela cantora em 1953. Além disso, Furuno compôs a música “Tokyo Baião” (東京バイヨン) especialmente para a cantora.
Keiko morreu em 18 de abril de 1995, aos 68 anos. Ela passou seus últimos anos dirigindo um restaurante que tinha o mesmo nome do hit “Tokyo Titina”, e se apresentava em festivais de música promovidos pela Associação de Cantores do Japão.
Em 1999, quatro anos depois do falecimento de Keiko, foi lançado o CD “Tokyo Baião Musume”, contendo as raras gravações de “Paraíba”, “Baião de Dois” e “Vingança” feitas no Brasil. Felizmente todas elas estão disponíveis no YouTube.
Certamente os leitores que acompanharam o texto até agora devem estar ansiosos por ouvi-las, e por isso elas seguem abaixo, além de “Tokyo Baião” e de “A Dança da Moda”.
1 | Paraíba ▪ パライーバ | Gravação no Brasil em nov/1951 |
2 | Vingança ▪ 復讐(ヴィンガンサ) | Gravação no Brasil em nov/1951 |
3 | Baião de Dois ▪ バイヨン踊り | Gravação em 4/mar/1952 |
4 | Baião de Tóquio ▪ 東京バイヨン | Gravação em 16/mai/1952 |
5 | A Dança da Moda ▪ 踊れバイヨン | Gravação em 28/fev/1953 |
1 | Paraíba | Gravação no Brasil em nov/1951 |
2 | Vingança | Gravação no Brasil em nov/1951 |
3 | Baião de Dois | Gravação no Brasil em nov/1951 |
4 | Dança do Baião | Gravação em 4/mar/1952 |
5 | Baião de Tóquio | Gravação em 16/mai/1952 |
6 | A Mulher que Veio do Rio | Gravação em 14/mai/1952 |
7 | A Flor do Amor em São Paulo | Lançamento em jan/1953 |
8 | A Alegre Filha do Baião | Lançamento em mar/1953 |
9 | Dance o Baião | Gravação em 28/fev/1953 |
10 | Volte Para Mim | Gravação em 28/fev/1953 |
11 | Mambo de Ginza | Lançamento em jul/1953 |
12 | Titina de Tóquio | Lançamento em ago/1953 |
13 | À Sombra das Flores de Mamão | Inédita |
14 | Cucaracha de Tóquio | Lançamento em ago/1953 |
15 | Mambo Chaquirí | Inédita |
16 | Mambo de Yagibushi de Tóquio | Inédita |
17 | A Filha de Carioca | Lançamento em nov/1953 |
18 | Porto de Sevilha | Lançamento em dez/1953 |
19 | Bolero de Tóquio | Lançamento em jan/1954 |
20 | Samba de Aizu Bandai | Lançamento em mar/1954 |
21 | Hoi Hoi Baião | Lançamento em abr/1954 |
22 | Mambo Nantaluya | Gravação em 12/abr/1954 |
23 | Trompete de Saudade | Lançamento em dez/1954 |
24 | Mambo Hong Kong | Lançamento em jun/1955 |