Político gosta de sorrir. Pelo menos, publicamente. Gosta de parecer simpático. Acredita que isso lhe rende votos. O eleitor, pensa ele ou ela, não gosta de cara feia, ou seja, séria. O eleitor gosta de ser enganado, em outras palavras. Por sorrisos falsos e, pior ainda, por falsas palavras. Assim tem sido no Brasil e no mundo, principalmente a partir da segunda metade do século passado, após o advento da televisão e dos marqueteiros profissionais.
Eisenhower, que não era político e sim militar, deve ter ganho a eleição presidencial nos EUA de fins dos anos 1950 sem um sorriso sequer. Era sério por natureza e formação, e não mudou seu jeito de ser para agradar aos eleitores. Estes, gratos ao vencedor da Grande Guerra recém-finda, elegeram-no a despeito da seriedade assumida. Kennedy, seu sucessor, é que encantou os americanos com seu simpático carisma, sua juventude e sua beleza. Aí o sorriso fez a diferença – e começou uma nova era. Principalmente porque seu concorrente era um sujeito feio por fora e por dentro: Richard Nixon, um suarento mentiroso profissional, como o caso Watergate provou.
Aqui no Brasil, os políticos da chamada República Velha eram todos sérios. Alguns, mais que isso: sisudos. Com direito a barba e bigode. Getúlio era mais sorridente. Não por premeditação eleitoreira, já que de 1930 a 1945 não precisou disputar eleição nenhuma, até porque eleição não houve. Sua maneira natural era cordial, cativante, mesmo sendo um ditador assumido após 1937. A eleição, pelo voto popular, em 1950, mostrou aos descrentes que ele conquistara de fato o coração das massas. E para isso deve talvez ter contribuído em alguma medida sua congênita simpatia. O povo quis a volta do “velhinho” sorridente. E o acompanhou, depois do suicídio, no maior enterro brasileiro de que se tem notícia até hoje. Entretanto, era cioso de sua privacidade, não concedia intimidades. Os ministros e os auxiliares diretos tratavam-no com cerimônia, pois havia uma distância a separá-los, um muro invisível, atrás do qual preservava-se solitariamente, até o fim, uma esfinge nunca decifrada.
Com Juscelino Kubitschek, o sorriso mostrou definitivamente a sua força. No caso, não um sorriso demagógico, feito para agradar ao eleitorado, mas um sorriso genuíno, espontâneo, que brotava sem esforço e conquistava a todos, menos aos udenistas, claro. Estes, pareciam ainda pertencer à Primeira República: eram mais formais e compenetrados. Vide Afonso Arinos de Melo Franco e Milton Campos, por exemplo. Não foi à toa, portanto, que, sorridente, JK foi apelidado de “presidente bossa nova”, pois realmente encarnava uma saudável e democrática modernidade naquele momento.
E o nosso José Américo? Fiel ao seu tempo e a si mesmo, ele foi indiscutivelmente um político sério. Em todos os sentidos. Já vi muita foto sua, mas não lembro de nenhum sorriso fácil em seu rosto. Está sempre circunspecto, como se presenciasse acontecimentos graves. Essa explícita austeridade fazia parte de sua natureza. Austero na política e na vida privada. Homem que não concedia intimidades. Reservado, autopreservado, até em casa, com os mais próximos. Mas sem ser hostil, desagradável no convívio, áspero.
Agora mesmo tenho em mãos o precioso livro de Aspásia Camargo, Eduardo Raposo e Sérgio Flaksman, O Nordeste e a Política – Diálogo com José Américo de Almeida, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984. Para quem quer conhecer melhor o político paraibano e brasileiro, é o que há de melhor, além, naturalmente, de suas próprias obras e as de sua secretária e biógrafa Lourdes Luna, testemunha e ouvinte atenta durante anos. No volume de quase seiscentas páginas há muitas fotografias de José Américo, mas praticamente nenhum sorriso. Em apenas uma delas, que retrata a recepção na Paraíba, em 1967, ao então senador Afonso Arinos de Melo Franco, vê-se um esboço, apenas um esboço de tímido sorriso, provável exigência da cordialidade inerente ao instante. No livro de sua secretária, Rastros na areia, há também uma foto em que se vê outro esboço de sorriso: é na cerimônia de posse de Ivan Bichara no governo da Paraíba. Esses flagrantes servem para humanizá-lo, para provar que nele havia uma doçura a misturar-se às seriedade e aspereza habituais, tal como foi finamente observado por Juarez da Gama Batista, autor do ensaio biográfico que melhor captou sua personalidade de tímido – um tímido paradoxal que rugia feito um leão nos momentos necessários e que fez da palavra falada em praça pública um altissonante instrumento de cidadania, a conferir altitude à nossa habitual política de rés do chão.
Ele foi de uma época em que não se precisava ser risonho para conquistar eleitores. Bastavam as ideias, o programa político e a respeitabilidade pessoal do candidato. Entre ser amado e ser respeitado, ele escolhia o respeito. Não que este excluísse necessariamente o afeto, claro. Mas a simpatia tinha que vir depois da honorabilidade, esta, sim, pré-requisito de tudo o mais. Quanto a isso, ele nunca tergiversou, preferia perder o voto a se desfigurar em sua essência. Maquiavel, em O príncipe, ensinou que este deve sempre escolher ser mais temido que amado. José Américo, creio, apoiava esse pensamento do sábio florentino, mas tinha, por sua vez, a sabedoria de substituir o temor pela reverência decorrente da honra e do mérito pessoais do reverenciado. O temor, sabe-se, produz efeitos provisórios e inconfiáveis. Já a honorabilidade se impõe até mesmo aos adversários.
Num de seus discursos, por ocasião de seu ingresso numa confraria literária, afirmou não ser “ave de bando”, confessando assim sua solitária individualidade. Daí ter chegado tardiamente àquele colegiado, quando outros, mais jeitosos, mais sociáveis e não raro menos merecedores o tinham precedido na agremiação. Essa assumida solidão tinha tudo a ver com a sua personalidade. Não era homem de buscar as convivências fáceis, aquelas mais superficiais que profundas, ditadas por interesses e vaidades mundanas. As frivolidades não o atraíam; daí não cultivar sorrisos gratuitos e enganosos, requisitos essenciais da chamada “vida social”.
Provavelmente, era orgulhoso, no sentido de que lhe bastava seu próprio aplauso. Essa, talvez, a razão de ter abandonado a política após a derrota em sua derradeira disputa. Deve ter pensado em silêncio algo parecido com “os que não me querem, não me merecem”,
Os grandes homens não podem ser reduzidos a rótulos estreitos, a carimbos sumários, como os “de direita” e “de esquerda”. Eles trafegam para além das margens do rio.bela frase com que Clemente Rosas comentou um dia um injusto revés. Seu voluntário recolhimento no casarão do Cabo Branco foi sua resposta altiva à volubilidade popular. A partir dali, não iria mais a ninguém; quem quisesse que viesse até ele. E a romaria foi grande e contínua: desde presidentes a anônimos do povo, passando pelos adversários de antes, todos unidos na reverência àquele que se convertera em reserva moral da nação. Quando nada mais pleiteou, de tudo se fez merecedor, confirmando a sentença bíblica de que “os últimos serão os primeiros”.
A outra grande liderança política paraibana de seu tempo foi Rui Carneiro, aquele que, em plena ditadura militar, afirmou que “forte é o povo”. E esse povo foi sempre sensível à sua natural bonomia, o que prova que a respeitabilidade pode abranger tanto os sérios quanto os risonhos, quando estes o são autenticamente, por natureza, como Juscelino e Rui, e não por oportunismo eleitoreiro. José Américo e Rui foram aliados e eventualmente adversários. Rui venceu Américo quando este disputou sua derradeira eleição, depois de deixar, consagrado pelo povo, o Palácio da Redenção. Algo semelhante, guardadas as proporções, ao que aconteceu a Churchill, que perdeu a eleição depois de ganhar com heroísmo a Segunda Grande Guerra. Na opinião de alguns analistas, José Américo teria perdido a eleição para o Senado por ter atacado o afável Rui com muita dureza. Tivesse sido mais ameno, é possível que tivesse ganhado a disputa. Mas quem conheceu o autor de A Bagaceira sabe que ele muitas vezes preferia perder os votos que deixar de falar o que pensava e sentia.
Mas volto a José Américo para concluir. Já escrevi e repito: quem quiser constatar a austeridade do patriarca do Cabo Branco, é só visitar sua casa-museu, subir ao seu quarto de dormir e contemplar suas camisas penduradas no armário. Camisas simples de mangas longas, guardadoras de seu recato, que nunca (ou quase) mostrou o braço nu. Até mesmo nas caminhadas à beira-mar. Tudo aquilo, em sua simplicidade autêntica, é um retrato fiel do homem. O nosso admirável e perene “homem de Areia”. Que não precisou sorrir para conquistar seu tempo e a posteridade.
Não quer isto dizer que foi um santo, que não teve defeitos. Os perrepistas ainda estão aí apregoando suas falhas reais e fictícias. Quem quiser santificar-se, que vá para os mosteiros, nunca para a arena quase sempre suja da política. Nesta, mesmo quando exercida por estadistas, não raro as razões de Estado se impõem às razões da moral comum. É o que Max Weber chamou de “ética da responsabilidade”, em contraposição à “ética da convicção”. Daí serem geralmente complexas as decisões políticas mais graves, exigindo uma análise que vá além do simples maniqueísmo, e para que se distingua, com argumentos, o verdadeiro “homem de Estado” do canalha e do assassino.
Queiram ou não seus eventuais desafetos, creio ser, portanto, imensamente positivo o saldo a favor de José Américo. A quem não se pode chamar propriamente de conservador – nem de reacionário. O fato de ter se engajado na luta contra as oligarquias de 1930 e de ter procurado “fazer a política dos pobres, porque a dos ricos já estava feita”, é uma prova eloquente do contrário. Os grandes homens não podem ser reduzidos a rótulos estreitos, a carimbos sumários, como os “de direita” e “de esquerda”. Eles trafegam para além das margens do rio. Quase sempre, eles costumam ser o próprio rio.