Via-o, em pijama, percorrendo a sala da casa estilo frontão e ligada às outras, ao lado da Catedral, onde morava. Magro, nariz aquilino, ele sobrava na vestimenta íntima e doméstica que usava. Era-me um enigma. Moço estudioso, entregue ao saber, vasculhando as páginas recheadas de conhecimentos. Jamais teria a ousadia em aproximar-me do parapeito da janela sempre aberta, a fim de conversar com ele. Era eu estudante no Ginásio “Lins de Vasconcelos”, do saudoso professor Manoel Neri, que morreu há alguns anos, bem velhinho, nos noventas e que, pela última vez, vi atravessando a movimentada Avenida Epitácio Pessoa, a desafiar carros ligeiros e obstáculos de calçadas desniveladas.
O que mais me impressionava era o itinerário circular daquele rapaz dentro de pequena sala em penumbra, percorrendo distâncias e estradas imensas, ensolaradas pelo exercício de sua voracidade pela cultura, pelo aprendizado, pelo elastecer de seu universo que não poderia ficar circunscrito a exíguo recinto de uma saleta. Visitava exposições de sábios, sem sair de casa, gostava de não se comprimir a uma epidérmica forma de vida meramente vegetativa.
Certa tarde, um magricela revestido de uma roupa engomada de linho branco, paletó e calça, chegou para dar aula de Biologia e escreveu no quadro, com sua caligrafia saltitante, palavras de difícil assimilação. Começou a explanação e logo nos conquistou pela sua facilidade em traduzir aquelas locuções para nós esfíngicas. Odontólogo, por formação, com o trauma por haver sido sobrestado em cursar Medicina, devido a sua ideologia nada em diapasão com os postulados do Golpe de 64. Perseguido, nunca abdicou de seu posicionamento político-ideológico. Professor Antônio Augusto Arroxelas Macedo se tornou nosso ídolo. Reservava uma de suas aulas, a fim de nos esclarecer dúvidas sobre sexualidade. Atendia nossos anseios de adolescentes inquietos.
Uma tarde dessas, passeando no shopping, encontrei-o sorvendo delicioso café. Encanecido, não perdeu o perfil de antes, a mesma magreza e o mesmo nariz. Reconheceu-me, palestramos, recordamos. Havia ele terminado graduação em Direito. Estava feliz. Deixei-o e saí ruminando uma palavra dita e escrita pelo querido mestre Arroxelas: intussuscepção, fixada no quadro negro do desaparecido colégio. Quem quiser saber o significado se socorra do dicionário. Sei bem, Antonio Augusto Arroxelas Macedo é professor e formador, merecedor de nossa mais destacada estima, digo, sem intenção de elogio barato, de que ele não precisa, nem gosta. Considero-me seu aluno. Com orgulho e a recordar, saudoso, a intussuscepção que nos trouxe para memorável e saudosa aula sobre os mistérios naturais das plantas.