Em que lugar do mundo nunca houve guerra? A resposta é simples. Apenas dois: Polo Norte e Antártida. Por quê? A resposta é ainda mais ...

Guerra: prática desumana da Humanidade

guerras conflitos
Em que lugar do mundo nunca houve guerra? A resposta é simples. Apenas dois: Polo Norte e Antártida. Por quê? A resposta é ainda mais simples: não têm população nem pertencem a nação alguma. Destarte, todos os lugares ocupados do mundo sofrem ou já sofreram algum tipo de conflito armado.

guerras conflitos
A beligerância seria inerente ao comportamento dos grupos humanos? Segundo Jean Jacques Rousseau (1712-1778), o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe (teoria do bom selvagem). Na opinião de Nicolas Maquiavel (1469 – 1527), ao contrário, a natureza humana é violenta, cruel e traiçoeira. A sociedade tenta moldá-la.

A evidente avidez que se nota pelo poder talvez justifique, em parte, a assertiva de Maquiavel. A meu ver, ambos os filósofos têm uma parcela de verdade e outra de exagero. O Bem e o Mal estão dentro do ser humano. Ironicamente, todo indivíduo é dividido. Tal qual o fiel da balança, dependendo das circunstâncias, ele pende ora para um lado, ora para outro. Há os que pendem predominantemente para um lado. Caso seja para o Bem, optam pelo amor ao próximo; caso seja para o Mal, optam pela guerra. Os primeiros sentem prazer em salvar; os demais, em matar.

O pensador Thomas Hobbes segue a linha de Maquiavel, ao afirmar no livro Leviatã (1651) que “o homem é o lobo do homem”. Ou seja, sem o limite das leis, o ser humano é agressivo, egoísta e preocupado apenas com sua preservação.
guerras conflitos
A frase, popularizada por Hobbes, não é de sua autoria. A sentença original, contendo o mesmo teor, consta em uma comédia de Titus Maccius Plautus (254 a.C. – 184 a.C.). Donde se conclui que a violência não é “desprivilégio” nosso nem de nossos contemporâneos.

Quanto à dualidade básica entre opostos inconciliáveis, a concepção maniqueísta não dá conta da complexidade que abrange essa polarização (bem/mal certo/errado, luz/trevas). Ela tem características similares às do etnocentrismo, conceito antropológico segundo o qual uma etnia considera seus hábitos e condutas superiores aos de outrem. Tais concepções já engendraram muitos conflitos armados mundo afora, nos quais ambos os lados, fiéis a seus deuses e convicções, se consideram do lado do Bem em luta contra o Mal.


Conflitos atuais no mundo

Atualmente, o que mais se focaliza na mídia internacional são dois conflitos importantes: Rússia versus Ucrânia e Israel versus grupo radical islâmico, Hamas. Esses confrontos podem obter a temida participação de grandes potências e, por conseguinte, engendrar outra grande guerra.

guerras conflitos
Muitos outros conflitos de menor visibilidade pipocaram nos últimos tempos. Estudiosos responsáveis pela cartografia das crises mundiais observam um significativo aumento de combates armados nas últimas décadas e nos últimos anos.

No Norte da África, desde 2016, Burkina Faso é palco de grandes conflitos que se estendem por dez países da região, num afrontamento de forças governamentais com grupos islâmicos.

guerras conflitos
Civis se deslocam em busca de abrigo, após serem expulsos pelo grupo terrorista Al Shabaab, na cidade de Buulo Mareer, Somália. The African Union Mission in Somalia
Na Somália, desde 2000, Al Shabaab, aliado de Al Qaïda tenta derrubar o governo local, sustentado pelos ocidentais, para estabelecer um governo baseado no radicalismo Islâmico.

No Sudão, cerca de seis milhões de pessoas tiveram que abandonar seus lares em decorrência dos confrontos do exército sudanês com um grupo paramilitar. Além de inúmeras mortes o conflito deixa mais da metade da população dependente de ajuda humanitária.

guerras conflitos
Uma menina descansa no caminho, depois de fugir dos intensos combates em Abyei, entre as Forças Armadas do Sudão e o Exército de Libertação do Povo do Sudão.United Nations, CC0
Em Myanmar (ex-Birmânia), no Sudeste da Ásia, um golpe de Estado militar, em 2021, deixa um saldo de treze mil crianças mortas e 1,3 milhão de pessoas desalojadas.

Em fevereiro de 2022, a Rússia fez uma invasão em grande escala na Ucrânia, devido a um conflito gerado anteriormente pela anexação da Crimeia, em 2014. Milhares de pessoas morreram e há milhões de refugiados em decorrência da invasão.

guerras conflitos
Edifícios residenciais destruídos por bombardeios do exército russo Em Kiev, capital da Ucrânia.EU Civil Protection
Em 7 de outubro de 2023, o grupo palestino Hamas fez um ataque surpresa contra Israel causando a morte de 1.400 pessoas e capturando cerca de 200 reféns. Israel respondeu com uma intensa ofensiva militar, ocasionando, também, a morte de milhares de pessoas, das quais 40% eram crianças, segundo a mídia.

Conflitos em menor escala, na Nigéria e na Síria, são também motivo de preocupação mundial. O Yémen, por sua vez, foi palco de negociação entre as partes beligerantes, providenciada pelas Nações Unidas, em 2022.

guerras conflitos
guerras conflitos
guerras conflitos
guerras conflitos
Imagens da crise humanitária causada pelos conflitos internos no Yemen.EU Civil Protection
Guerras desencadeadas por motivos fúteis

O que leva as nações a guerrearem entre si? Raramente há uma causa clara e única. As causas geralmente são múltiplas e podem estar ligadas a outras, de maneira complexa. As razões mais frequentes são econômicas, territoriais, religiosas, nacionalistas, civis, revolucionárias, vingativas, defensivas. Todavia, há também conflitos bélicos desencadeados por motivos fúteis, insólitos, idiotas e até mesmo hílares. Vejamos alguns deles, a título de curiosidade:

Guerra de Dahis e Ghabra (610 a 650) ▪ Motivo: devido à trapaça em uma corrida entre os cavalos chamados Dahis e Ghabra, as tribos árabes ABS e Dhubiyan entraram em guerra. A aposta valia cem camelos. Os Dhybiyan emboscaram o cavalo concorrente que estava na dianteira. Por isso os ABS se recusavam a pagar a aposta. Isso desencadeou o conflito.

guerras conflitos
J.L. Gerome, S.XIX
Guerra da Padaria (1838 a 1839) ▪ Motivo: destruição da padaria de um chef francês durante um confronto civil no México. O francês tentou reparação dos danos, em vão. Então, reportou o caso ao rei francês Luís Felipe I. A França já andava irritada com o governo mexicano devido a calotes em empréstimos e assim começou o confronto, que terminou graças ao acordo de paz, com a intervenção da Inglaterra.

Lijar x França ▪ Em 1883, após uma hostilidade sofrida em Paris pelo rei da Espanha Alfonso XII, a cidade espanhola de Lijar, com apenas 300 de moradores, declarou guerra a um país inteiro: a França. O conflito durou cerca de um século, sem uma gota de sangue, sem um tiro sequer. Em 1983, após o rei espanhol Juan-Carlo ter sido muito bem recebido em território francês, a cidade de Lijar se prontificou a assinar um ridículo acordo de paz com a França.

guerras conflitos
1883: Declaração da Guerra
guerras conflitos
Alfonso XII
guerras conflitos
1983: Acordo de Paz

Guerra do Guano (1879 a 1884) entre Chile, Bolívia e Peru ▪ Motivo : disputa pelo “guano”, palavra espanhola que designa fezes de aves e morcegos, excelente para produção de pólvora e adubo, por conter muito fósforo e azoto.

Guerra de Canudos (1896/1897), no sertão da Bahia, considerada “vergonha nacional”, foi um embate armado entre o exército brasileiro e os seguidores do beato Antônio Conselheiro. Trinta mil mortes numa luta fratricida, desencadeada por boatos infundados e por equívocos militares.

guerras conflitos
CanudosSílvio Jessé, 2017
Canudos foi duplamente extirpada da paisagem brasileira: consumida pelo fogo, em 1887, e afogada pelas águas do açude Cocorobó, em 1969. Submergiram juntamente com Canudos as três grandes vergonhas dos representantes do poder constituído: o logro das expedições governamentais contra os sertanejos, o constrangimento da Igreja católica, cujo enviado local insuflou ataques contra o Conselheiro, e a infâmia de um representante da justiça (juiz de Direito) que desencadeou o conflito, baseando-se na falsa hipótese de uma iminente invasão de uma determinada cidade pelos seguidores de Antônio Conselheiro.

Guerra do Cão Fujão ▪ no início do século XX (1925), havia conflitos de fronteiras entre a Grécia e a Bulgária. Um dos grupos radicais búlgaros, que dominava a cidade de Petrich (divisa com a Grécia),
baleou um grego que atravessava a fronteira atrás de seu cão fujão. A Grécia declarou guerra à Bulgária e invadiu Petrich. A Bulgária pediu ajuda imediata à Sociedade das Nações daquela época (atual ONU) para impedir a batalha. Mesmo assim, houve a morte de cem soldados. Uma multa de 45 libras foi paga pelos gregos. Até hoje, ninguém sabe dizer em qual lado ficou o cachorro.

Guerra do Futebol ▪ Havia desavenças entre Honduras e El Salvador referentes ao processo migratório. El Salvador tinha pequena extensão territorial e excesso de população. Muitas pessoas migravam para o país vizinho menos populoso, até que o governo hondurenho começou a deportar os imigrantes. Ambos os países disputavam também fronteiras no mar e algumas ilhas do Pacífico. O estopim foi causado em 1969, por uma simples partida de futebol entre as seleções dos dois países centro-americanos, valendo uma vaga para a Copa do mundo de 1970. O cessar-fogo veio quatro dias depois, graças à intervenção da Organização dos Estados Americanos (OEA), todavia, mais de 6 mil pessoas (a maioria civis) já haviam perdido a vida.

Vimos, acima, uma guerra provocada por um animal doméstico: o cachorro. Outra, relatada abaixo, bem mais importante, foi desencadeada por um porco. Esse fato merece ser abordado com detalhes.


A Guerra da Barba

Em 1131, um singular infortúnio, até então inaudito, mudou os rumos de um reino e desencadeou uma guerra entre França e Inglaterra. O fato é que Philippe, príncipe herdeiro do trono francês, filho do rei Louis VI,
cavalgava tranquilamente juntamente com alguns amigos numa rua parisiense quando subitamente um porco errante se entremeou nas patas de seu cavalo. O equino se empinou, derrubou o infortunado príncipe e caiu sobre ele. Na queda, o cavaleiro real bateu a cabeça contra uma pedra, num baque fatal. Foi assim que o porcus diabolicus, animal vil, sujo e desprezível, entrou para a historiografia francesa como “porco regicida”.

Com a morte do herdeiro do trono, seu irmão mais novo assumiu seu lugar. Este, conhecido posteriormente como rei Louis VII le Pieux (o piedoso -1120/1180), sem pendor algum para reinar um país, estava destinado ao clero. A fatalidade ocorrida fez com que ele desistisse da vida eclesiástica e se submetesse a um casamento de conveniência que aportaria grande extensão territorial à França. Sua futura esposa, Aliénor d’Aquitaine traria como dote de casamento o imenso ducado da Aquitânia, que triplicaria a superfície do domínio de Louis VII.

O pai de Aliénor era favorável à união, mas fez com que fosse incluída uma espécie de cláusula no regime matrimonial de modo que o ducado não fosse absorvido pelo domínio real e que sua filha, após o matrimônio, continuasse proprietária da herança territorial. Aliénor tinha dez anos a mais que o jovem soberano.
Este não havia sido preparado para assumir o poder. Segundo consta, era desajeitado, inocente, veleidoso e também obstinado. Cometeu diversos erros políticos que ofuscaram seu prestígio e sua autoridade. Seu perfil não combinava em nada com o da esposa.

Em 1144, Louis VII foi incitado pelo Papa Eugênio III a participar da segunda cruzada. O rei se dispôs então a prestar socorro aos Estados cristãos da Palestina, ameaçados pelos turcos. Luis VII foi o primeiro rei europeu a participar de uma cruzada e ganhou com isso algum prestígio, mas, no cômputo geral, a cruzada foi fortemente prejudicial a seu reino, em diversos aspectos: no plano financeiro, empobreceu consideravelmente o tesouro real; no plano político, o prejuízo se deveu ao fato de ter deixado o reino durante dois anos em mãos alheias; no plano militar, a cruzada teve uma sucessão de fracassos nos quais perdeu grande parte de sua cavalaria e de seu exército. O maior de todos os prejuízos (nos planos patrimoniais, territoriais estratégicos e de dinastia) foi a ruptura de seu matrimônio, após a cruzada. Isso acarretou a perda da grande extensão territorial da duquesa.

Com a dissolução do casamento, sob alegação de consaguinidade, Aliénor retomou seu dote e, pouco depois, casou-se com Henri Plantagenêt, futuro Henri II, rei da Inglaterra, país para o qual seu rico dote foi automaticamente repassado. Os filhos mais célebres que ela teve, em segundas núpcias, como rainha da Inglaterra, foram Ricardo Coração de Leão e João Sem-Terra. O casamento acirrou a rivalidade já existente entre França e Inglaterra e provocou a chamada Guerra da Barba. Destarte um afoito porco, ao se entremear nas patas de um cavalo, desencadeou a guerra, ocorrida entre 1152 e 1153.

Por que “Guerra da Barba”? O “x” da questão citado pela historiografia, como sendo puramente pessoal, é pouco plausível. Consta que a causa da ruptura teria sido o fato de o rei ter raspado a barba após a chegada da segunda cruzada. A rainha não gostou e insistiu, em vão, que ele deixasse a barba crescer novamente. A meu ver, seria por demais simplista considerar a discordância de uma grande aliança política pela presença ou ausência de barba. Raramente há uma só causa para a ruptura de um matrimônio, assim como para o desencadeamento de uma guerra. Há a considerar os conflitos pessoais e matrimoniais precedentes entre ambos. Diversos fatores
(desconhecidos ou omitidos) podem ter acarretado a ruptura, de grande envergadura política. O maior culpado continua sendo o porco, ao mudar os destinos da realeza francesa.

Desde os primórdios, amor e guerra coexistem. Isso está registrado até mesmo na mitologia bíblica: quando só havia dois irmãos, Caim matou Abel. Onde fica a propalada fraternidade? A humanidade sempre foi desumana? Provavelmente nunca tenha havido um ano sem guerra em todo o mundo. A pior e mais sangrenta de todas foi a Segunda Guerra Mundial. O período histórico considerado mais pacífico, chamado de “Longa Paz” ou de “Pax Americana”, foi justamente posterior a essa grande guerra. Esperamos que os conflitos atuais não desencadeiem outra grande guerra, que só seria benéfica à indústria bélica, à custa de milhares de vidas perdidas. Eu me pergunto sempre: se há tantas adversidades no mundo como doenças, acidentes, terremotos, tsunamis, trombas d’água, desmoronamentos, pandemias, e demais catástrofes de pequeno, médio e grande porte, não seria uma insanidade fazer guerras?

Encerro essas reflexões sobre a beligerância dos humanos com uma frase sentenciosa de Erich Hartmann: “A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam entre si, por decisão de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam.”

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Infelizmente desde que o mundo é mundo existem as guerras! Fomos feitos para amar e não para matar, seja com as palavras ou com as armas!

    ResponderExcluir
  2. Alexandre Amorim28/7/24 10:02

    Querida Jô Drumond, farei breves considerações acerca de "A magia do Belo" e "Guerra: prática desumana da humanidade".
    É admirável a tua capacidade de transitar por dois temas e universos tão distintos, quase antagônicos, numa demonstração de versatilidade e abertura de olhares, sem se intimidar com eventuais aspectos difíceis e espinhosos a serem tratados e analisados.
    Eu e Mônica estivemos em Bruges. Que linda e aconchegante é essa cidade medieval belga. De certa forma, viajei a Bruges, novamente, com "A magia do Belo". Imaginei a tua experiência de êxtase com aquela tela de Cézanne. Que vivência linda e profunda que você teve, Jô. É daqueles instantes que nos levam à gratidão pela dádiva divina que é a vida.
    Quanto à "Guerra", fica aqui o meu elogio por desbravar tema tão difícil, permeado por uma carga imensa de dor e sofrimento ancestral e atual.
    Em alguns trechos, não deixei de notar a presença de teu refinado senso de humor, com toque mineiro, especialmente na Guerra do Cão Fujão, ao mencionar que "Até hoje, ninguém sabe dizer em qual lado ficou o cachorro". Não deixa de dar uma medida da estupidez da guerra.
    Pessoalmente, creio que um dos principais fatores para o surgimento das guerras é o econômico. Diz respeito ao lobby da indústria bélica, em um negócio sórdido e execrável que, por apertada síntese, coloca vidas e corpos humanos em um gigante "moedor de carne". Também diz respeito à disputa por recursos naturais, em especial petróleo e água. Mais recentemente, tem sido observado grande interesse no lítio, elemento químico importantíssimo para tecnologias contemporâneas, como a relativa à produção de chips e baterias.
    Por qualquer ângulo de análise, manifesto-me contrário à prática de guerras. Acredito e aposto na diplomacia e na capacidade de entendimento pacífico para a resolução de conflitos internacionais.

    ResponderExcluir
  3. Texto maravilhoso para entender o ser humano, refletirmos. Parabéns Jô 👏

    ResponderExcluir
  4. Texto maravilhoso para entender o ser humano, refletirmos. Parabéns Jô 👏

    ResponderExcluir
  5. Jô, você discorre com clareza sobre o objetivo do ser humano, a luta é pelo poder.
    Quão triste assistir essas cenas onde os menos favorecidos são expulsos de suas terras e ficam a mercê dos poderosos.
    O ser é desumano.
    Parabéns, Jô.

    ResponderExcluir
  6. Jô, as ilustrações confirmam as barbaridades que ocorrem com o povo que só quer ter o direito de viver, mesmo na luta e com tanta escassez de uma vida justa.

    ResponderExcluir

leia também