Saussure disse que o signo linguístico é constituído de significante (os sons) e de significado (o sentido) e que ambos são indissociáve...

Função das preposições

linguistica portugues gramatica preposicao
Saussure disse que o signo linguístico é constituído de significante (os sons) e de significado (o sentido) e que ambos são indissociáveis, como o verso e anverso de uma folha de papel. Quando escrevi, num conto incluído no livro A fama e a cama, editado pela Bom Texto, do Rio de Janeiro em 2003, a história de uma pobre mãe solteira que entrega a filha a um casal estranho por não poder sustentá-la, procurei um título adequado que designasse a mãe que perde o filho, à semelhança de “órfão”, que designa o filho que perde um dos pais. Como não encontrei um nome equivalente, dei ao conto o título de “Órfã de filha”, traduzido adequadamente por Olga Obry para o alemão como “Nach Tochter verwaist”, publicado no jornal vienense Die Presse.

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Minha experiência pessoal, no caso de “órfã de filha”, me levou a crer que existe significado sem significante, isto é, existe o sentido sem a palavra adequada que o expresse, e que também existe o significante sem significado, como a maioria das conjunções e preposições, por exemplo, que não significam nada e apenas unem ou relacionam termos sintáticos, ou como o som que ouvimos de palavras estrangeiras que desconhecemos. Como não sei japonês, quando vejo dois japoneses conversarem, ouço apenas o significante das palavras que eles dizem, sem lhes atribuir significado. Assim, pois, significante e significado não são exatamente como o verso e o anverso de uma folha de papel... Se é verdade que “vou com você” difere de “vou por você”, não me parece que as preposições “com” e “por” tenham sentido. Também há diferença entre “mapa” e “tapa”, mas não são os fonemas /m/ e /t/ os portadores de significado.

Quero crer que, assim como os fonemas, que estabelecem diferenças mas não têm significado, também as preposições e conjunções estabelecem diferenças mas tampouco têm significado. A conjunção integrante, por exemplo, não significa nada. Há diferença entre “eu sei que ele está aqui” e “eu sei por que ele está aqui”, mas a conjunção em si mesma, embora estabeleça diferenças, não tem significado. Em inglês a conjunção “that”, integrante, pode até mesmo ser suprimida sem prejuízo do entendimento. Tanto faz dizer I know he is here como I know that he is here [“eu sei (que) ele está aqui”]. Em alemão a conjunção dass (“que”) às vezes também pode ser suprimida:

Tanto faz dizer Ich glaube, Sie sind verrückt quanto Ich glaube, dass Sie verrückt sind [“acho (que) você está maluco”].

Dir-se-á que os dicionários registram conjunções e preposições porque lhes atribuem significados. Os dicionários, no entanto, não registram apenas palavras com significado. Se alguém consultar o dicionário de línguas, encontrará várias interjeições que não são na verdade palavras, mas elementos paralinguísticos substitutos de gritos. Assim, o dicionário registra "psiu", que é apenas o chamamento de alguém cujo nome ignoramos ou um pedido de silêncio que é acompanhado de um gesto: o dedo indicador ereto diante dos lábios. Bastaria o gesto. O som seria desnecessário.

Os dicionários registram várias interpretações para as interjeições ah, ui, ai, hum, pô, entre outras, porque é a situação que indica o sentido delas. Elas não têm significado por si sós. Acho que ocorre o mesmo com as conjunções e as preposições. Com, por exemplo, serve, num contexto, para indicar companhia (mora com a mãe), afeto (carinhoso com a esposa), instrumento (cavou com a pá), comparação (parece-se com o pai), conteúdo (jarro com água), mistura (café com açúcar), finalidade (veio com o propósito de matar), etc. É a situação, além do verbo ou do nome seguido do complemento preposicionado, que vai caracterizar ou determinar o emprego da preposição. Muitas preposições se usam umas
pelas outras: "E na distância (e à distância) morro todo dia sem você saber" (Roberto Carlos) ele mora de favor (por favor), tevê em cores/tevê a cores, etc.

Repare-se que, no exemplo que citei de Roberto Carlos, a expressão que ele usou foi “na distância”, em que o nome “distância” vem precedido de preposição e artigo. Isso significa que “na distância” e “à distância” são expressões sinonímicas. Dizer que o nome “distância” só é precedido de a com acento grave (a craseado) se estiver determinado é esquecer que a expressão é sempre precedida de preposição: o nome “distância” se usa sempre precedido de crase, mesmo que a distância não esteja determinada. Veja-se a propósito a lição de Adriano da Gama Kury, no livro
Ortografia, Pontuação, Crase (2.ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação/Fundação de Assistência ao Estudante, 1992, p. 110-112), com exemplos da expressão “à distância” (com crase), sem que o nome “distância” esteja determinado, em escritores como Rui Barbosa, Camões, Raul Pompeia, Gilberto Amado, Ciro dos Anjos, Guimarães Rosa e outros mais.

Às vezes, o emprego da preposição é ambíguo: caixa de ouro pode significar caixa feita de ouro ou caixa contendo ouro (= caixa com ouro); repare que em "caixa com ouro", a preposição com equivale a um verbo no gerúndio (contendo), mas não se pode dizer que a preposição signifique um gerúndio... Na verdade, a preposição exerce a mesma função das conjunções, mas aquela estabelece relação com palavras; e estas, com orações. E muitas vezes a preposição também substitui a conjunção. Cf: Peço que você saia X peço para você sair.

Em síntese: a preposição não tem sentido, como os fonemas, mas, como eles, também estabelece distinções. A diferença é que os fonemas distinguem vocábulos, e as preposições e conjunções distinguem enunciados.
linguagem neutra
José Augusto Carvalho, mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de vários livros sobre língua e linguística, entre os quais Gramática Superior da Língua Portuguesa e Estudos sobre o Pronome, ambos editados pela Thesaurus, de Brasília, em 2011 e 2016, respectivamente.


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