Nos primeiros dias aqui no Seminário Maior da Sagrada Família de Coimbra, onde resido no momento, deparei-me com Etty Hillesum e o seu Diário, escrito entre 1941 e 1943, ano da sua morte em um campo de concentração, aos vinte e nove anos de idade. Na realidade, o primeiro registro ocorreu em 9 de março de 1941 e o último, em 13 de outubro de 1942. Encontrei-a por acaso, em um dos corredores do Seminário, mais precisamente, em uma das mesinhas antigas que compõem a decoração do ambiente,
provavelmente do século XVIII como a própria construção do edifício, há algumas delas por aqui. Comecei a lê-lo, e a escrita de Etty logo me envolveu. Entretanto, interrompi a leitura após algumas páginas, não sem pesar. É que estou em Coimbra para a realização do meu Pós-Doutorado, e tendo um projeto de pesquisa a desenvolver, logo me doeu a consciência. O dever a cumprir chamou-me a atenção, e um sentimento de culpa me levou a devolver o livro para a mesinha, pensando que, talvez, depois, houvesse um tempo para ele, afinal, eu tinha um trabalho a fazer. Não é que o tempo chegou?! Agora, com o trabalho do Pós-Doutorado já bem encaminhado, posso deter-me na fruição do livro que tanto almejava ler.
Enquanto escrevo este artigo, paulatinamente, vou passeando pelas páginas de Diário 1941-1943, lendo e escutando a trajetória de Etty à medida que a composição deste pequeno artigo avança. Sim, escutando, uma vez que sua escrita parece uma canção, cuja letra e melodia expressam a maturação de uma alma. Diante da inexorabilidade dos acontecimentos, pois Etty entende que querem o aniquilamento dos judeus, ela escolhe dar sentido à sua trajetória e busca vivenciar cada etapa, sempre à procura de ser alguém melhor. Cada dor sentida é uma oportunidade para seu crescimento e fortalecimento interior. Desde o início, ela escolhe não odiar. A despeito do cenário sombrio que se desdobra diante dela, Etty não acalenta em si ódio pelos alemães, o qual a grande maioria do seu povo nutre, pois entende que de nada adianta nutrir tal sentimento. Ela compreende que odiar é ferir-se a si mesma, muito mais do que ao outro.
Este é um problema dos tempos que correm. O grande ódio contra os alemães, que me envenena a alma. “Eles que se afoguem, essa ralé, deveriam ser todos fumigados.” Estas observações fazem parte da conversa do dia-a-dia e às vezes provocam-nos a sensação de que é impossível viver nesta época. Até que de repente, há umas semanas, me surgiu a ideia libertadora, hesitante e frágil como um rebento de relva que começa a nascer num terreno bravio rodeado de ervas daninhas: mesmo que só houvesse um alemão digno de ser protegido contra essa chusma bárbara, por causa desse alemão decente não se devia derramar o ódio sobre um povo inteiro.
Isto não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes, uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas, tenta informar-se, mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe.
Em meio a tanta crueldade, às inúmeras mortes, às perseguições contra os judeus, ao cerceamento respeitante ao ir e vir, às privações de toda natureza, a um porvir de frios invernais, fome e infestação de piolhos pela ausência da higiene mínima, ela escolhe o caminho do Amor, da doação de si mesma, alargando a sua capacidade de Amar, estendendo-a à humanidade inteira. Acolhe o que existe de belo no ser humano, mas, do mesmo modo, o que há de feio. "A vida é bela!", afirma Etty. Apesar de tudo, vale a pena viver!Isto não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes, uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas, tenta informar-se, mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe.
p. 69
[...] não vejo outro caminho senão a gente voltar-se para dentro de si e, dentro de si mesmo, arrancar e destruir tudo aquilo que ache ser a razão para destruir outros. E compreendamos bem que cada átomo de ódio que acrescentamos a este mundo o faz ainda pior do que ele já é.
O sofrimento, visto pelo prisma certo, é oportunidade de crescimento e de melhora pessoal. Assim, ela se liberta, a despeito das injunções impostas pelo inimigo. Ela, em seus registros, escreve um verdadeiro tratado sobre "a arte do sofrimento", e o escreve porque, antes, vivencia-o. No sofrimento, ela se recria e sente a presença de Deus. A oração, a conversa franca com Deus é o instrumento através do qual se fortalece, é o bálsamo para as suas chagas. Buscando compreender o sofrimento quando é assolada por ele, conhece-o por dentro, e, assim, Etty se fortalece, mas sabendo que também pode se fragilizar e se entristecer, pois isso também é humano.
O importante é não permanecer por muito tempo nesse estado. E nesse processo, ela cria resistência e adquire a sabedoria de saber se conduzir através das provações.p. 301
A realidade é algo que uma pessoa precisa de assumir; todo o sofrimento que a acompanha, todas as dificuldades que uma pessoa tem de assumir e arcar, ao arcar já aumenta a capacidade de resistência. Mas o conceito de sofrimento (que não é realmente “sofrimento”, pois sofrer é em si frutuoso e pode tornar a vida em algo precioso) deve ser desfeito. E se uma pessoa desfaz os conceitos, nos quais a vida está como que aprisionada entre grades, então a pessoa liberta a verdadeira vida dentro de si, mais as forças que lá tem dentro e, consequentemente, uma pessoa terá também as forças para arcar com o verdadeiro sofrimento presente na própria vida e na do resto da humanidade (p. 315).
Etty Hillesum, uma holandesa judia de vinte e sete anos, é estudante de Direito, mas ama a Literatura e o estudo de línguas, mais precisamente do russo. Devoradora dos livros, além da Bíblia, tem Rilke, Dostoiévski e Jung como seus preferidos. Ela luta com a palavra, pois busca a perfeição quando o assunto é a sua própria escrita. Deseja ser escritora, mas a sua ânsia de tudo apreender para melhor se exprimir, impede-a de ir além. O divisor de águas para Etty foi a chegada de Julius Spier em sua vida. Na realidade, foi ela quem o procurou, em um momento de crise, confusão interna. Spiel, a princípio seu terapeuta, vinte e sete anos mais velho do que ela, torna-se o amigo amado. Com ele, Etty começa o seu percurso interior, e ao longo de dois anos descobre, paulatinamente, a dimensão que há dentro de si, de onde vêm o seu equilíbrio e a sua força.
As adversidades, ao contrário de a inibir, fazem-na querer viver. Ela deseja continuar viva a fim de ajudar na construção do novo tempo que há de vir. Eis a última frase registrada em seu diário: “Gostaria de ser um bálsamo para muitas feridas” (p. 333). Chegado o momento de ir para o campo de concentração, ela parte da estação de trem com os outros mil judeus, cuja única certeza era a angústia de um destino incerto. Mas Etty parte com um sorriso nos lábios, expressão da lucidez conquistada ao longo dos últimos dois anos. Ela acena para a amiga Jopie Vleeschhouwer, que testemunha a sua partida, não mais vindo a encontrá-la nesta vida.