Rascunhos do Absurdo encontrava-se pronto, a boneca do livro entregue a Miguel Marvilla para a preparação da edição. Minha expectat...

Estalo da Palavra (V)

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Rascunhos do Absurdo encontrava-se pronto, a boneca do livro entregue a Miguel Marvilla para a preparação da edição. Minha expectativa era grande, todos em nosso meio sabem do soberbo editor de livros que Miguel sempre foi.

Encontramo-nos para discutir os últimos detalhes e tivemos uma conversa animada; discorremos sobre a vida, sonhos e morte. Miguel convidou-me para participar de mais um de seus projetos, a preparação de uma revista. Falamos sobre o processo de criação poética. Demos muitas risadas lembrando nosso desespero de registrar um poema ou uma palavra em situações inusitadas.

Na última vez que nos encontramos ele estava calado, dispnéico, com um olhar que mesmo para mim, já habituado ao convívio com doentes graves, penetrava demais, dizia demais... Cuidei então dos aspectos práticos; tentei ajudar meus colegas médicos na batalha contra o que se mostrou inevitável.

Lutei pela vida de um homem. Perdi um poeta que me incentivou e inspirou. Merecemos perdão por sermos tão egoístas com aqueles que admiramos. Foi no setor de emergência do hospital, já iniciando um quadro de choque séptico, que Miguel dirigiu-se a mim pela última vez:

“ Pôxa Jorge, e eu nem consegui acabar seu livro...”

Ponho-me diante de minhas verdades. Vejo-as ressurgir nos olhos resolutos do poeta. Talvez eu tenha visto o que queria ver, não sei...

Vi que a morte é branca.

Resolvi incluir no livro uma homenagem a Miguel, três poemas. Não poderia ser de outra forma.



 
 
Tanta falta de sentido meu amor
São tantas cruzes meu amor, tantas cruzes, e eu que nem tenho deus para poder sugerir-me um talvez ... Murcharam os olhos do poeta. Acabou-se, meu amor, acabou-se. Devolvida a esperança às mãos dos homens, contorno o leito do poeta morto para alisar-lhe a mão. Despeço-me, meu amor. Esse lugar já não é meu. E eu que pensava que entendia a morte... Fico agora recostado no canto, como uma besta, perdido.


Moribundo
Se te lembrares de mim, traz-me orquídeas num tubo de ensaio – dessas que são isoladas, para não se ocupar da impureza de nossos dias – e injeta em minha veia. Coloca um fone em meus ouvidos que me sussure brisas. Mostra-me fotos de casa e conta de nossas sombras . Se te lembrares de mim, lê-me a Máquina do Mundo. Não te prendas aos meus olhos fechados; na escuridão, recicla-se a luz do entardecer. No limiar da consciência o nada-fundo se disfarça em paz. Se te lembrares de mim, ignora a falsa ausência de gestos. Abafa os sons dos aparelhos que me amparam com um lindo sorriso. Se te lembrares de mim, diz a quem interessa, que os amo. Se te lembrares de mim, deixa-me de recordação teu cheiro. Depois, sai feliz e celebra a vida. Pois logo chegará a morte. Quem sabe a única esperança...


Le Papillon blessé*
Na atual névoa das simetrias. Quando se veem pungentes os passos que reverberam certezas, parece um capricho, essa fieira de insignificâncias (o rastro da borboleta). Por isso, o silêncio resoluto desse corpo flácido do homem diante de nós (o retorno à condição humana é o recurso último ao qual se entrega a borboleta em momento de agonia). Esses tantos que se debruçam sobre seu leito não se apercebem da fraude. (Na verdade, o poeta não carece de existência corpórea.) São borboletas que persistem suspensas na cor indistinta do tempo. Sempre restará o marolar das asas, cortejando, com seus signos, aquele que, no absurdo da vida, se aperceber só. *A borboleta ferida

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  1. Anônimo2/7/24 16:21

    Que poemas!
    São Maravilhas.
    Que poemas!
    São Marvillas.

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  2. Parabéns, Jorge Elias! Muito bons seus poemarvillas!

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