A expressão é de Eça de Queirós, vinda da boca do Raposão, o personagem Teodorico Raposo, de A Relíquia. Ao sentir-se impelido ao ócio luxurioso, vinha-lhe a expressão que sintetizava as ações que se seguiriam – “Caramba, vou fartar o bandulho!”. Ela veio-me à cabeça, olhando os livros expostos na Livraria Bertrand, aqui em Coimbra. Os olhos bateram de relance em um dos títulos e depois retornaram para a certificação do que haviam captado: A quinta dos animais.
O leitor já deve ter adivinhado que A quinta dos animais é A revolução dos bichos, de George Orwell. Dos vários títulos lusitanos, este é uma tradução mais fiel daquilo que se encontra no original Animal farm. O título brasileiro mais conhecido, A revolução dos bichos, é o que hoje se chama de spoiler, por adiantar o que vai acontecer na narrativa. O termo inglês spoiler substitui, por certo modismo, principalmente entre a juventude, o clássico prolepse, já consagrado no campo da Teoria da Literatura.
Do título lusitano do livro de Orwell ao que eu gostaria de dizer, passou-se um tempo curto, enquanto saboreávamos um excelente prato de feijão preto, arroz, couve, linguiça e lombo de porco assado. Explicava à minha esposa, Alcione, que a carne de porco tem muitas qualidades, em relação à carne de boi (por aqui não se come boi, come-se vaca...), além do sabor inigualável. Ela é mais barata, come-se fria, quente, morna, gelada, e não tem partes duras. Não há carne de porco dura, leitor. E do porco, aproveita-se ainda mais do que do boi, pois até a pele se come. Tudo se come, até um pouco do pelo, o que leva à expressão popular e sertaneja, para designar um certo grau de dificuldade — já comi toicin com mais cabelo —, consagrada na boca de Fabiano, personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos. Enfim, do porco se aproveita tudo: o que está por dentro, o que está por fora e o que forma o meio. Da porca, come-se até a vagina, iguaria celebrada na poesia de Marco Valério Marcial, poeta latino do século I d.C.
O que quero dizer, leitor, está associado ao fato de que não há carne de porco dura. Diferentemente do boi, o porco não precisa de pasto ou de fazer deslocamentos atrás de pastos, para se alimentar. Nem trabalha no campo, como o boi, ou em qualquer outra atividade. Ele, como o ser humano, é omnívoro, come de tudo. Todo o resto de comida, não importa o que seja, o porco come. E vai além, ele come porco também, se a ele for servido, porque não está cerceado pela ética humana que proíbe, ao menos nas sociedades urbanas, a prática da antropofagia. Ele é a metáfora perfeita encontrada por George Orwell para a sua fábula moderna A revolução dos bichos. Em suma, o porco não trabalha, só come, só engorda.
Digamos de início que o texto de Orwell é uma fábula moderna, o que já nos remete para uma construção de base alegórica. A alegoria é, em grego, dizer ou falar outra coisa. Diz-se algo, mas com o intuito de que o ouvinte/leitor entenda o que se encontra na camada escondida do enunciado, não na camada externa. Assim, fala-se de uma coisa para dizer outra. Ou porque não se quer falar claramente ou porque procura-se fugir de uma censura estabelecida, que pode custar caro ao enunciador de uma verdade incômoda.
Orwell, ao escrever Animal farm tem em mente uma crítica ao totalitarismo soviético stalinista, mas que pode se aplicar a qualquer totalitarismo, que sempre se inicia mostrando-se como a solução humanista ideal, deriva, em seguida, para coisa pior, muito pior do que aquela a que se contrapunha. Assim, os animais, de explorados pelos humanos, tomam o controle da fazenda e passam a exploradores de sua própria espécie, com os seus líderes, festina lente, apressando-se lentamente, se aproximando e se parecendo cada vez mais com os antes detestados humanos, ao ponto de se confundirem e de não haver mais distinção entre uns e outros. Em suma, os antigos explorados se confundem deliberadamente aos antigos exploradores, e aquilo que, anteriormente, era proibido e execrado torna-se permitido e visto como uma prática política humanitária.
De modo a garantir a hegemonia do poder, um dos líderes, o porco Napoleão, expurga o outro, Bola de Neve, acusando-o, como é de praxe, daquilo que ele, Napoleão é e faz, de ser contra o povo e querer continuar com a exploração. O importante para que os néscios acreditem na subversão da verdade é ter uma propaganda sistematizada e eficiente, representada por Garganta, um porco gordo, cujo nome diz tudo (Squealer, no original, cujo sentido é de dedo-duro), cuja retórica fácil, manipuladora e servil ao chefe, faz a mentira tornar-se verdade e a verdade tornar-se mentira, diante da cegueira quase religiosa dos estultos seguidores.
Napoleão aposta em duas características entranhadas dos seus liderados: a ingenuidade e o pragmatismo. O pragmatismo de uns, que se beneficiam com a situação, ajuda na propaganda para iludir os outros, que se sustentam na ingenuidade e na credulidade, com relação a seu líder. Creem-no um libertador, sem que lhes seja possível ver nele um déspota, a despeito de todas as evidências que lhes são mostradas. Principalmente, quando o que, anteriormente, causava indignação, torna-se uma prática, não só aceitável, mas sobretudo justificável, mostrando-a como indispensável para o bem da democracia...
É o caso do cavalo Sansão. Movido pela força e pela obstinação obtusa, Sansão não consegue entender os propósitos malévolos de Napoleão, acreditando na boa vontade e na propaganda de melhorias e de felicidade que os animais alcançarão com a sua administração, repetindo incansavelmente duas frases, que se tornaram máximas: “Napoleão sempre tem razão” e “Trabalharei cada vez mais”. Sansão é um boxeador (significado original de seu nome, Boxer) fracassado, cuja força obtusa é um dos pontos da alegoria de Orwell. Como ver e reconhecer as situações sem o raciocínio, sem a reflexão, e sendo bombardeado continuamente por uma propaganda orquestrada? Impossível. Se, por um lado, a cegueira involuntária da ingenuidade é desculpável, pela falta de raciocínio, que nem todos possuem; por outro lado, indesculpável e execrável é a cegueira voluntária do pragmatismo, que consegue assimilar, sem qualquer pudor, um dos sete mandamentos da nova ordem napoleônica, camaleonicamente adaptado à nova situação: Todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que outros.
A alegoria de Orwell nos mostra, portanto, um porco como líder. Um animal que não trabalha, que come de tudo, inclusive com a capacidade de comer os seus próprios semelhantes, e que acaba, por sua associação com os humanos, favorecendo os que antes eram tidos como inimigos, mas que agora lhes dão vida boa para um usufruto pessoal e não coletivo, às custas da sua própria coletividade. E há quem, sentindo todos os maus odores da situação, aplauda. Afinal de contas é impossível aplaudir e, a um só tempo, apertar as narinas.
É ou não é de fartar o bandulho?