Piados quebram o silêncio das primeiras horas. A luz desperta bem-te-vis, canários da terra, rolinhas e outros pássaros que trazem em primeira mão as rotineiras notícias do dia. Aqui e acolá há um movimento humano de domingo despreguiça o cenário. O Sol já se faz presente há algumas horas, chega para descortinar a madrugada friorenta do fim de junho e revela as formas dos bancos, calçadas e árvores da praça.
Por ali, ainda resistem resquícios dos festejos juninos. Bandeirolas com o colorido meio desbotado devido às contínuas lavagens das chuvas, restos de embalagens de fogos de artifício como chuveirinhos e bombinhas, pedaços de madeira mal queimados da sobra da fogueira se amontoam em um canto. Tudo meio molhado pela invernada, meio balançado pelos ventos que prenunciam agosto.
O tempo é um constante despertamento.
E os ponteiros seguem... E chegam ecos diversos. De um motor que ronca e destoa do marasmo do lugar, de um portão que se abre em alguma casa, da voz que se perde ao longe, da fumaça solta da chaminé da padaria enquanto sonolentos seres humanos levam para casa o pão quase sempre sem perceber a poesia impressa no saco de papel onde está embrulhado.
Tudo rima nas primeiras horas. Como o frio paralelepípedo do calçamento, a piscante monotonia dos semáforos de trânsito num cruzamento, a fachada de uma casa antiga, ou o descanso do cachorro com o corpo todo espichado no chão na porta da casa.
A simetria da cidade é uma farsa que captura olhos humanos como harmonia, pois a vida é assimetricamente perfeita. Engana-se que vê a perfilação dos postes como totalmente no prumo, ou ainda a marcha dos automóveis como uniforme. O homem e suas invenções até podem tentar a seguir padrões, mas sempre o diferente brota como de uma fissura do chão, feito luz entre as nuvens, como a água ultrapassa qualquer passagem feita travessia oferecida pela gravidade.
E os olhos que negam enxergar são os mais cegos, aprisionados a contextos limitados, encarcerados em suas próprias grades.
A quietude se agita, vira correnteza, nas horas díspares de duração pela variedade dos lugares, dos olhares, da respiração. Até mesmo a cantoria da passarada soa diferente. E acorda os dias, desperta atenções.
Disso tudo vem o espanto. Pela borboleta num perfeito pouso na folha após ter-se arrastado em algum momento da vida, pelas mãos que juntam latas para sobreviver e remexem depósitos de lixo, pelos olhos perdidos do idoso em outro mundo, pela coloração do ballet das flores sob o reflexo das gotas de água. É o milagre da caminhada mais valioso que o prêmio da chegada. Tudo é despertamento.