Para minha mãe
Na última fotografia, estavas irreconhecível. Teus olhos não eram teus olhos. A boca não era em nada semelhante à tua. E a expressão nem de longe deixava pressentir, por algum traço familiar, que eras tu.
Realmente não eras tu. Faltavam elementos elucidativos do teu ser, tão singular. Faltava-te a vivacidade do olhar, onde se teria escondido? Faltavam-te os gestos. O jeito gracioso dos lábios se movendo para dizer das coisas, do momento, de ti, dos outros, às vezes com aridez, outras vezes com tamanha intensidade, a ponto de emocionar-nos e levar-nos às lágrimas. E ainda mais frequentemente, com o humor vivo, com uma ironia ímpar, que eram tuas marcas, as marcas do teu gosto de exprimir emoções e sentimentos, como água na pedra banhando contornos, abrindo caminhos, quebrando resistências, invadindo reentrâncias, para ver surgir o novo, o escondido. O apenas sugerido, explodindo em floresta de arte, aberta em concretude.
Como água na pedra, conformada em conchas,lagos plácidos, minúsculas fontes, e conformando cálices cones, rosáceas, franjas, fímbrias, escarpas, dedos invisíveis, aprisionando em fôrmas as infinitas formas de ser, de multiplicar, de dividir, de somar, de subtrair e de cantar a vida.
Sim, acrescento uma às quatro velhas operações fundamentais, porque aprendi contigo que nada fazemos sem cantar, ainda que em tons diversos, harmônicos ou desarmônicos, afinados ou desafinados, o fazer que é viver.
Teu fazer, sem dúvida, foi maior que teu tempo, teu viver. Dele, te inspiraste para compor a música de cada instante de teus dias, transmutada em hinos, cantos, salmos.
De tua boca, saíram muitos cantos, escuros, espessos, esquivos. Ásperos cantos a embalar os cinzentos dos teus baixos.
De tua boca, saíram muitos cânticos. Hosana, magnífica. Tantum ergo, deo gratias, a embalar teus altos, verdadeiras inundações de teus rios transbordantes de graça.
Curvada sobre essa ausência, agora pergunto-me:
Em que paragens, em que desertos esconderam esses cantos?
Por que gargantas desceram e se fixaram em estado de pretérito?
Por que montanhas subiram até as portas do nunca mais?
Um dia, saberei?
Saberemos todos aqueles que fazem impotentes e perplexos, a mesma pergunta intrigante e tão antiga?
Falava-te o sopro. E por faltar-te o hálito do animus, não eras tu. Eram teus o contorno do físico, a alvura da pele, o branco dos cabelos, a beleza melancólica das mãos abandonadas ao longo do corpo.
Mas, sim, nem as mãos eram tuas.
Como reconhecê-las estáticas, vazias, sem calor, espelhos opacos, sob o inexorável jardim efêmero pelo modo, pelo meio, pelo momento?
As mãos dinâmicas no labor diário criando, cuidando, curando. As mãos flagradas em emoção traiçoeira, trêmulas, abrindo-se em carinhos, em bênçãos, exortando ou castigando.
Impossível reconhecer-te na última fotografia. Decididamente não eras tu. Eras sombra, eram gestos para sempre calados do que foste.
Prefiro contemplar-te no álbum interior, à semelhança da água transformando a pedra que multiplicas em imagens vívidas, canteiro de sempre vivas lembranças, minha mãe.