Não resisti ao apelo de quem pôs em livro o Café Alvear, o ponto de encontro perdido, aderindo a esta cidade ainda no tempo em que todas as pessoas se conheciam e fui ver, com o sol brando, o Ponto de Cem Réis em obra na nova versão de Cícero Lucena.
A versão Damásio Franca, nos anos 1970, foi dada como impreterível a justificar o túnel e a passagem circular de nível da Guedes Pereira para a Duque de Caxias. Vem Ricardo Coutinho com Luciano Agra e deixam só o túnel, voltando o Cem Réis ao largo ou praça Vidal de Negreiros surgida com a derrubada da Igreja do Rosário dos Pretos, que um belíssimo álbum editado por Fernando Moura, com prefácio do prefeito de então, reproduz em 2006.
Sei, desolado, que o Ponto de Cem Réis já era. Custei a aprender que para cada geração há uma cidade diferente. Minhas netas, mesmo as que já me deram bisnetos, não sabem onde fica a Rua da Areia ou a Guedes Pereira. E são pessoenses.
Nestes últimos dez anos tenho atravessado o Ponto de Cem Réis apenas sob o testemunho adormecido e mudo dos três ou quatro prédios velhos que ainda resistem ao abalo do trânsito e ao desprezo da elite.
Da elite, sim, porque o povo de hoje continua presente na mesma praça de 1951, quando aqui cheguei, com seus cafés, bancas de bicho, lojas populares e até sua feira. Antes da Covid, entre a agência do Bradesco e o oitão do antigo cinema Rex, ainda cheguei a curtir um momento dos meus ao encontrar bem sentados, à sombra da tarde, num banco de rua, Joaquim Brito (o Quinca Brito de meio mundo social e cultural) e o shakspereano das nossas vênias, João Batista de Brito. Nunca mais me foi dada satisfação igual. Enquanto se entretinham na conversa faziam-me rever, passando ao lado e ao largo, todo um arquivo vivo em pessoa e espírito que habita o meu coração. Habita e sustenta, pois não tem sido outra a razão do meu pulso ou dos meus batimentos, regulares ou oscilantes, pouco importa.
Não resisti e fui ver anteontem o que há por trás do tapume que circunscreve e encobre a nova restauração anunciada na placa de Cícero. Um palmo acima do meu queixo, trepado sob ajuda de um engraxate. Eles, os engraxates, pouquíssimos sobrevivem sem mais contar com o prestígio antigo que lhes reservara todo um pavilhão da praça. O brilho novo dos calçados lhes foi usurpado pela cobiça industrial.
Consegui brechar: o busto de Vidal de Negreiros livrou-se da enorme base de cimento feita para lançamento de foguetes a pretexto de servir de pedestal para o fundador da nacionalidade brasileira. Há quatro ou cinco mil anos, pedestal tem sido suporte de pedra ou mármore para uma escultura, um objeto de arte com o qual deve se harmonizar. Faltava esse liame da escultura com a monstruosa plataforma de cimento a contrastar com a delicadeza do pequeno busto do nosso herói maior. Para Barbosa Lima Sobrinho deve-se a ele, a Vidal de Negreiros, a união cívica das três raças forjada nos Guararapes. O velho Varnhagen não diz por menos.