Uma das modalidades de aposta da Loteria Federal é a do bilhete lotérico. Este contém 10 frações e pode ser adquirido em partes ou i...

Bilhete corrido

avenida paulista
Uma das modalidades de aposta da Loteria Federal é a do bilhete lotérico. Este contém 10 frações e pode ser adquirido em partes ou inteiro. O valor do prêmio é proporcional à quantidade de frações que se adquire. Neste ano de 2024 da Graça do Senhor, um bilhete inteiro custa a bagatela de R$ 40,00, cada fração, obviamente, um décimo desse valor.

Os bilhetes são numerados, cada número com 5 algarismos. São efetuados 5 sorteios que ocorrem às quartas-feiras e sábados. Para ser beneficiado com algum valor além do prêmio principal, pode-se receber prêmios menores,
caso se acerte a dezena, a centena ou o milhar do número vencedor ou de cada um dos outros quatro sorteios. É possível receber até mesmo uma merrequinha se acertar a unidade do primeiro prêmio.

Com ao advento da Loteria Esportiva, a Mega Sena e outros, essa variante de aposta anda meio fora de moda. O fato é que, após os sorteios semanais, os bilhetes não contemplados perdem totalmente sua utilidade, para mais nada servem. É o tal do bilhete corrido.

Pois meu amigo, minha amiga, é assim que estou me sentindo: um bilhete corrido. Meu tempo passou, ando meio deslocado nesse mundão de Deus, sem utilidade, quase um estorvo. Vou linhas à frente contando um pouco desse drama registrando inicialmente que desde que me fiz presente neste nosso Planeta, e se não me falha a aritmética, foram passados 26 782 dias. Acham pouco? Já vi a Terra dar um pouco mais 73 voltas em torno do Sol e novembro essa trajetória irá se completar mais uma vez.

avenida paulista
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Vi o Brasil ganhar 5 Copas do Mundo, Pelé fazer 1000 gols e dedicar aquele feito às criancinhas. Era pequenino quando o presidente-sorriso inaugurou Brasília. Também testemunhei Gagarin cumprir pela primeira vez uma órbita completa em torno do nosso planeta e dizer que a Terra era azul. Depois acompanhei na TV o homem pisar na Lua deitando falação de que aquilo era um grande passo para a humanidade. Eder Jofre, para minha admiração, se tornou nosso galinho de ouro e deu pancada em muita gente até receber o cinturão como campeão mundial na sua categoria. Também recebi com espanto a notícia de que já era possível alguém viver com o coração de outra pessoa. Amei os Beatles e os Roling Stones. Cantei “Para não dizer que falei de flores”. Assisti aos festivais da TV Record e me lembro que foi no de 67 que Sérgio Ricardo quebrou um violão e jogou os cacos na plateia.


Acreditei que eu e mais uma turminha de sonhadores poderíamos consertar o mundo. Até que já bem crescidinho resolvi dedicar-me ao magistério, casar, ter filhos; ou seja, me tornar um respeitável cidadão. Pelo menos tentei... Depois de tudo isso, eis-me aqui me sentindo um bilhete corrido. Explico.

Dias atrás visitando filha na capital paulista, fui presentado por ela e o genro com um passeio retrô; ou seja, fui dar com eles um rolê pelas bandas que fizeram parte de meu passado. Fomos à Avenida Paulista, altura do número 900 e imediações, onde, na segunda metade da década de 1970 e na primeira parte da década seguinte, andei gravitando por exigência de trabalho.


Só que, quando finda as obrigações daqueles trampos pesados de doze ou quinze aulas diárias, tive o privilégio de molhar a palavra nos escritórios da Alameda Eugênio de Lima (embaixo do prédio da Jovem Pan) com gente da melhor qualidade. Ah, que falta me fazem esses amigos, esses “doces bárbaros”. Fernando Teixeira (o FT), Portela, Montoni, Aldair, Lourenço, Cibele, Osmar... A turma era bem maior e, para a maioria, a certidão de nascimento perdeu a validade. Foram para outras dimensões, deitar aquelas conversas que eu tanto apreciava.

Foi então que resolvi dar uma subidinha naquelas escadarias de um dos mais conhecidos endereços de nossa pauliceia desvairada, aquele que mencionei linhas atrás. Subi lentamente respeitando as
imposições dessas minhas tantas décadas de vida. Alcancei o pátio do andar térreo. Cheguei a um adro com manias de latifúndio e ali puxei prosa com um vigia solitário. “Faz tempo que o senhor trabalha aqui?” “Só uns seis meses”. “Pois está fazendo uns meses a mais do que 48 anos que comecei aqui minha vida de professor”.

Ele me olhou espantado, trocamos outras palavras. Na verdade eu começara na profissão uns seis anos antes, mas ali era essa a mesmo diferença no calendário. Desci as escadas na mesma velocidade em que subi. Na calçada uma animada roda de capoeira. Depois fomos a um dos “escritórios” da Eugênio de Lima, decano ali das redondezas. Modificado em nada lembrava o botequim dos meus tempos. Os garçons eram outros, Até o chope parecia ter outro sabor. Tudo por li estava diferente, não me pertencia mais. Tempinho depois, pagamos a conta. Ainda consegui esconder uma lágrima. Que força para escondê-la e não permitir a chegada de outras. Não há dúvidas. Sou mesmo um bilhete corrido.

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  1. Paiva, no meu jeito de pensar, pela sua narrativa e pela riqueza de vida e talento, digo que você é um bilhete premiado.

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  2. Mariangela Scatena Benute30/7/24 07:23

    Esse anônimo que comentou aí acima sou eu.

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  3. Anônimo1/8/24 18:10

    Como muito bem disse Mariângela você é sem dúvida um bilhete premiado que nos enche de alegria , quando vc derrama essas recordações , que nos toca fundo

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