Dinâmico Presidente da secção paraibana da União Brasileira dos Escritores (UBE), o carioca Luiz Augusto Paiva da Mata reside na capital da Paraíba há alguns anos. É festejado professor de Matemática. Além disso, dedica-se à literatura, desfrutando de elevado conceito nos meios culturais do País, por força dos textos que produz.
A virtuose de sua aptidão literária já se manifestara em crônicas reunidas nos volumes “O chapéu do meu avô” e “O coturno e as margaridas” . Reafirmara-se em dois livros de contos, a saber: “A saudade e outras manias do coração” e “37 não é febre”. Consolida-se agora neste romance denominado de “Memórias Indecentes”.
Admiro o ficcionista. Faço satisfeito a apresentação do seu livro, neste 95º encontro do “Sol das Letras”, que se dá na Fundação Casa de José Américo, de nossa belíssima cidade de Nossa Senhora das Neves.
O escrito divide-se em 10 partes. Soma 94 páginas. Na capa, depois do nome do livro, vê-se um subtítulo explicativo da obra: “De como nove homens fizeram da vida de uma mulher um mundo repleto de aventuras, sexo, tragédias, paixões, fantasias e arrependimentos.”
Em síntese aventuras, incompreensões, amores, relações sexuais, paixões, crimes, tragédias, fantasias, arrependimentos, perdões e muito humanismo existem no romance de Luiz Augusto Paiva da Mata.
O autor descreve com habilidade as venturas e desventuras de uma bonita prostituta brasileira, chamada de Aída Kartarian.
Li a estória com agradável deleite. Luiz Paiva escreve bem. É dono de um estilo leve, solto, claro. Além disso, consegue transmitir aos leitores as emoções experimentadas pela principal protagonista do seu romance.
“Memória indecentes” me parece um texto de atroz realismo. Ironiza situações, mas valoriza os sentimentos das personagens nelas envolvidas. Mostra a torpeza de alguns personagens, mas respeita os seus sofrimentos e fragilidades.
Luiz não desdenha das angústias e dores de suas criaturas. Ele narra a estória de Aída com lirismo, fino humor e aguçada compreensão a respeito das decisões da heroína e de outros atores, com os quais ela interage.
O livro fala de prostituição, uma ocupação antiga dos seres humanos, um tema sempre presente em obras literárias, um costume degradante de algumas pessoas.
Na prosa, recordo a meretriz Sônia, filha de um bêbado irresponsável. Submete-se à prostituição para assegurar o sustento da família, que sobrevive na miséria. Personagem do extraordinário romance “Crime e Castigo”, escrito pelo incomparável Fiódor Dostoievsky, Sônia é vítima de uma sociedade desajustada, indiferente ao sofrimento das pessoas. Embora se sujeite a ganhar dinheiro através de relações sexuais sem amor, ela não perde a dignidade; ela mantém a fé; ela acredita na força restauradora da religião e do amor. Por isso, acompanha o jovem Raskólnikov, quando ele vai cumprir, nas planícies geladas da Rússia, as penas que lhe foram impostas pelos terríveis latrocínios cometidos.
Sônia jamais perde a dignidade. Por força de sua fé religiosa, transforma-se na possibilidade de redenção do criminoso Raskólnikov, a quem evidentemente ama. O seu comportamento angelical, prova que qualquer pessoa tem a possibilidade de se recuperar e de viver de acordo com os valores consagrados no ambiente social. Principalmente se houver amor.
Das Sagradas Escrituras, também relembro um episódio envolvendo uma mulher dominada pela luxúria. Jesus estava, no Monte das Oliveiras, ensinando ao povo. No relato do Evangelho escrito por São João, foi o Salvador interrompido por doutores da lei e fariseus, que trouxeram até Ele uma mulher flagrada em adultério. Forçaram-na a ficar em pé na presença de todos. Indagaram ao Salvador se deviam apedrejá-la como recomendava a Lei de Moisés. Jesus os ouviu em silêncio. Depois, os desafiou usando as seguintes palavras: “Aquele que entre vós estiver sem pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.” Ninguém agrediu a infiel. Todos se retiraram. Somente ela ficou e Jesus Cristo lhe perguntou: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?” A mulher disse que ninguém a condenara. Então, o Messias lhe adiantou: “Nem Eu te condeno; podes ir e não peques mais.”
Luiz Paiva é literato. Conhece, também, o ensinamento transcendental. Ao contar a estória da Aída vivendo na luxúria, auferindo rendas em troca de favores sexuais, não quis condenar a protagonista. A sua intenção foi outra. O que pretendeu foi demonstrar que os seres humanos são naturalmente pecadores, precisando, portanto, desculpar as faltas de seus semelhantes, para serem perdoados dos seus próprios pecados. Afinal, no Evangelho escrito por Mateus, há a expressa recomendação de Cristo:
“Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida que usardes para medir os outros, igualmente medirão a vós.”
Terminada a digressão, volto ao livro de Luiz Paiva.
No capítulo inicial – “O começo de tudo isso.” –, explica o autor a razão que levou a sua heroína à prostituição.
Aída Kartarian era filha de um casal de comerciantes armênios, que migrara para o nosso País em 1939, estabelecendo-se no Bairro da Aclimação, da Capital do Estado de São Paulo.
Na primeira metade da década de 1970, ela tinha apenas 17 anos. Terminara o ensino médio. Preparava-se para o magistério. Como outras normalistas de sua geração, sonhava em casar e formar uma família. Porém, não conseguiu uma coisa nem outra. O destino lhe foi ingrato, levando-a por um caminho de sofrimento. Aída sofreu um estupro do próprio tio, chamado de Gregório. Suportou a violência e passou a ter medo do perverso estuprador, que ameaçava matá-la, se revelasse aos pais o ocorrido.
Por conta da violência sexual, a jovem engravidou. No princípio, escondeu dos pais e do irmão a prenhez. No entanto, quando a barriga apareceu, a família se transtornou. Aída ficou abalada. Findou abortando no meio da gestação.
Depois da interrupção da gravidez, os traumas da adolescente cresceram. Os pais não percebiam que ela fora vítima de uma ação criminosa. Imaginavam que se entregara voluntariamente a algum namorado, cujo nome não queria revelar.
Preconceituosos, intolerantes, frios, julgando que a mocinha desejava proteger alguém, sem se preocupar com a vergonha causada à família, resolveram expulsá-la de casa. Assim, mesmo sendo vítima de um estupro cometido pelo próprio tio, vítima também da incompreensão de pais ignorantes e frios, precisou Aída sair de casa apenas com a roupa que vestia.
Sofreu bastante. Porém, Deus imediatamente a amparou, permitindo que encontrasse, naquele mesmo dia, abrigo, na condição de empregada doméstica, da residência de um casal, que gostou de sua aparência e se apiedou de sua situação.
Passou Aída a trabalhar como arrumadeira e babá dos dois filhos de Ricardo e Salete. Ele era desembargador. Morava, com a mulher e os dois filhos, numa mansão no Alto de Pinheiros, na capital do Estado de São Paulo. Ali, a moça passou a viver. Havia muitos cômodos na casa dos seus patrões. Aída dividiu um quarto com outra empregada, de nome Bernadete, de quem se tornou amiga e confidente. Influenciada pela colega e movida, igualmente, pela vontade de ganhar dinheiro fácil, Aída passou a conhecer homens, aos quais concedia favores sexuais em troca de grana. Em suma, tornou-se uma mulher de programa. Tempos depois, caiu, literalmente, na prostituição. Trabalhou nas ruas, em boates e casas de prostituição de diversas cidades brasileiras.
Da mesma forma que a personagem Sônia, de Dostoiévsky, a protagonista Aída, imaginada por Luiz da Mata, não perdeu completamente a dignidade. Continuou sendo capaz de amar. Mantinha relações sexuais com centenas de homens, mas somente alguns desfrutavam do seu verdadeiro amor.
“As memórias indecentes” narram justamente, noutros capítulos, os relacionamentos de Aída com os homens que amou. Os nomes deles correspondem a oito dos títulos da estória: Olavo, Sandoval, Hermenegildo, Valdo, Edgar, Alciclênio, Zé Eduardo e Sinval. O capítulo final, denominado Gregório, é dedicado ao reencontro casual da meretriz com o tio delinquente que a estuprou. Os dois apenas conversam sobre o passado.
A vida degradante de uma puta foi contada, em versos, pelo pernambucano Manuel Bandeira. No poema “Vulgívaga”, o vate recita:
“Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!
Não sei entre que astutos dedos
Deixei a rosa da inocência.
Antes da minha pubescência
Sabia todos os segredos...
Fui de um... Fui de outro... Este era médico...
Um, poeta... Outro, nem sei mais!
Tive em meu leito enciclopédico
Todas as artes liberais.
Aos velhos dou o meu engulho.
Aos férvidos, o que os esfrie.
A artistas, a coquetterie
Que inspira... E aos tímidos — o orgulho.
Estes, caço-os e depeno-os:
A canga fez-se para o boi...
Meu claro ventre nunca foi
De sonhadores e de ingênuos!
E, todavia, se o primeiro
Que encontro fere toda a lira,
Amanso. Tudo se me tira.
Dou tudo. E mesmo... dou dinheiro...
Se bate, então, como estremeço!
Oh, a volúpia da pancada!
Dar-me entre lágrimas, quebrada
Do seu colérico arremesso...
E o cio atroz se me não leva
A valhacoutos de canalhas,
É porque temo pela treva
O fio fino das navalhas...
Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!”
A protagonista de “Memórias Indecentes” não se amolda ao tipo de meretriz imaginada por Manuel Bandeira. É uma puta mais humana, pois não perdeu a fé, acredita no amor e no perdão, assemelhando-se à Sônia de Dostoiévsky.
Por isso, mesmo depois de sofrer a violência, Aída conseguiu amar verdadeiramente oito homens. Por isso conseguiu perdoar o tio Gregório. É que sempre manteve em seu coração o humanismo cristão que liberta a alma.
Luiz Augusto Paiva da Mata fez um belo romance. Com atroz realismo, construiu a personalidade de uma mulher forte, de uma mulher lutadora, de uma mulher guerreira e altruísta.
Aída Kartarian é uma bela personalidade. Lembra Sônia de Dostoiévsky e lembra também a garota de programa sedutora, enaltecida por um romântico e namorador beletrista, Vinícius de Moraes.
O compositor e bardo do Rio de Janeiro exalta o amor recebido de uma mulher como Aída em seu Soneto da Devoção.
Passo a declamá-lo:
“Essa mulher que se arremessa fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia,
Que se ri dos meus pálidos receios,
A única, entre todas, a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez... — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!”
Com essas palavras, termino a minha participação recomendando que comprem e leiam o livro “Memórias Indecentes”, do nosso companheiro Luiz Augusto Paiva da Mata.