A frase parece contrariar o juízo crítico que afirma devermos nos distanciar do objeto para vê-lo melhor e, assim, procedermos a uma análise, o mais possível, isenta. Mas só parece, porque, na realidade, a aproximação e a vivência diária com alguém é o que vai nos dar uma visão mais verossímil de quem ela é. Acredito que é nesse ponto que entra a alegoria platônica do Anel de Giges, que se encontra na República (359b-360d), expressando um problema mais moral do que filosófico: se você tivesse o dom de ficar invisível, o que você faria? Estando invisível, suas ações seriam condizentes com o que você prega, estando à vista de todos? Com relação ao elenco das pessoas idolatradas, no início deste texto, a convivência diuturna é absolutamente desnecessária, tal é o distanciamento entre palavra e ação.
Particularmente, acho uma infantilidade entregar-se sem limites à adoração de qualquer ser humano, que não sejam os pais, merecedores de toda a nossa gratidão e dedicação. Em seguida, tenho a certeza de tratar-se de uma atitude nociva a demonstração explícita de um apoio irrestrito a pessoas que, no mais das vezes, são impostores e embusteiros. Só pessoas imaturas têm ídolos inatacáveis, por mais que os pés de barro estejam constantemente expostos.
Eça de Queirós, no seu ironicamente delicioso romance A Relíquia (1887, aqui utilizaremos a edição crítica de Carlos Reis e Maria Eduarda Borges dos Santos, Lisboa, INCM, 2021), apresenta-nos uma cena cômica, com o personagem Teodorico Raposo, dos Raposos do Alentejo. Tendo ido à Terra Santa para cobrir-se de uma santidade fingida, a fim de assegurar a condição de herdeiro universal, no testamento da tia Patrocínio – excelente nome falante, como dizem os franceses –, o Raposão, após umas noitadas de luxúria no Cairo, só enfrenta frustrações em Jerusalém. Fracassada a tentativa de uma noite sensual, a deliciar-se com uma dançarina palestina, epitetada a Rosa de Jericó, Fatmé, a dona da pensão, tenta lhe passar outra mulher que, em nada agrada a Teodorico, diante da visão dela sem véu, exibindo, entre outros maus predicados, um sorriso pútrido. Fatmé, sempre interessada nas piastras de ouro que ganharia com a sua atividade de cafetina, traz-lhe, então, uma núbia perfeita, mas que se encolhe e foge ao toque dos dedos do Raposão. A noite de luxúria prometida nas palavras torna-se um verdadeiro fracasso, quando se defronta com a realidade.
Diante das lamentações de Teodorico, que fora “aos Santos Lugares para” se “refocilar” (Capítulo II, p. 159), ao sábio alemão Topsius, seu companheiro de viagem, o erudito germânico lhe dá uma bela lição de filosofia (idem, p. 160):
“O sábio fez considerações sobre a voluptuosidade. Ela é sempre enganadora. Debaixo do sorriso luminoso está o dente cariado. Dos beijos humanos só resta o amargor. Quando o corpo se extasia, a alma entristece...”
A situação é cômica, ainda mais se levarmos em conta os pontapés tomados na ilharga, a ele, Teodorico, endereçados pelo “Hércules”, pai de uma “Vênus”, que ele tenta espiar no banho, olhando pelo buraco da fechadura, em cenas anteriores à frustrada dança da Abelha com a Rosa de Jericó... Para uma plena fruição, convido o leitor a ler o malogro da saga, diante dos propósitos concebidos, de Teodorico Raposo, nesse incontornável romance.
Lendo a cena de A Relíquia, não tive como não me lembrar de Augusto dos Anjos, embora em outra perspectiva. Não mais a da ironia, mas a da exposição de uma realidade que não condiz com as aparências, conforme se encontra no poema “As Cismas do Destino” (estrofe 89, versos 353-356, Parte III):
“Ah! Por mais que, com o espírito trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!”
Está aí a chave de todo o enigma. Seja no plano ficcional, com a crueza recriminatória de Augusto dos Anjos, ou com a ironia de Eça de Queirós, nos apresentando um personagem fingido e hipócrita, que resolve jogar o jogo de um mundo não menos fingido e hipócrita, e perde a aposta, por não ser tão ousado para dobrá-la, insistindo na mentira, como a hipocrisia pede e fazem os ídolos políticos aos seus aparvalhados adoradores; seja na realidade embaciada em que as pessoas nos apresentam, principalmente políticos e artistas de todos os vieses, nada resiste à “anatomia horrenda dos detalhes!”.
É impossível deixar de fora Camões e a passagem do Velho do Restelo, no Canto IV de Os Lusíadas (estrofe 94 e ss.), quando o personagem “d’aspeito venerando” e “cum saber só de experiências feito”, recrimina o desejo irrefreável da “glória de mandar” e da “vã cobiça”, que estão na origem da hipocrisia, cobiça tão devastadora para uma nação, porque vista como “ilustre” e “subida”, mas, quando submetida ao infalível microscópio, torna-se “dina de infames vitupérios”.
Só quando decidimos retirar o véu de nossos olhos e renunciar a uma avançada e voluntária catarata, é que avistamos a cárie no sorriso perfeito. E, se investigarmos com afinco, veremos que o sorriso perfeito é uma prótese...