O xerém que nos foi servido em crônica de alguns dias pelo joffiliano Thomas Bruno, ele ressaboreando um café ainda sob o quente aroma de sua infância, deu água na boca de um outro menino remoto, aborrecido do internato no Pio XI, que se agregou à casa de um tio, em Campina Grande, isto há pouco menos de oitenta anos. A casa ficava no Alto do Seixo ou dos Seixos que, com o tempo, deve ter perdido esse nome.
O velho Viana era primo distante de meu pai, ambos de origem caririzeira, acolhendo-me em sua casa mais pela boa vontade ou por mercê do espírito do que propriamente pelos recursos. A casa era mantida por um dos filhos, João Viana, que se conservou solteiro enquanto pôde ao lado dos pais e de quatro irmãs também solteiras, duas das quais solidárias com ele, pois qualidades e encantos casamenteiros não lhes faltavam.
“Como já falei, a mesa que cabe 7 cabe 8” – reafirmou com franqueza esse tio-de-bondade já deixando cair os braços aconchegantes em meus ombros, chamando-me a si na hora em que meu pai se despedia.
A sala, que não era grande, parece que já me esperava. Com os três quartos ocupados, não foi problema armar aí a minha rede num ângulo que não constrangia a circulação normal. A um canto, aproveitando a claridade de uma das duas janelas fronteiras, disponibilizava-se aberta a máquina de costura, a costureira ao lado, rosto e olhar a irradiarem sua clara e serena simpatia à novidade de minha chegada; na entrada para o corredor, em trajes de cozinha, as três outras irmãs, uma delas se desculpando por estar de saída para o expediente da escola onde ensinava.
Até chegar ali, largado o regime do internato, eu me sentia coisa nenhuma dentro de uma cidade autônoma de poder, força e orgulho, mais perto que me certificasse dentro dela, sentindo o rumor barulhento e pesado de sua artéria principal a fechar ângulo com o tinido ensurdecedor da rua Índios Cariris, para onde os carros do mundo inteiro vinham ser desamassados. Nessa rua a oficina de Luiz de Tem-tem, filho mais velho de Tio Viana, trocava as juntas de tampão dos caminhões ainda que recém-chegados de fábrica.
E que tudo isso tem a ver com o xerém servido pela crônica de infância do meu bom confrade?
Ora, xerém de leite de manhã, no jantar, com sobremesa da aposta ou torcida das companheiras diárias de pilão no futuro alegre do cantor de banheiro (Bonequita linda!), agregado que se tornara primo querido.
Foi a partir dessa estação feliz que passei a me apropriar da cidade e de mim mesmo. Se não sou lá essas coisas, se continuo a ter medo do mundo, tornei-me a partir daí dono das minhas pernas e da minha liberdade. Sou o que sempre quis. Com 90 anos, mais de setenta sem voltar a essa rua saudosa, ainda faço fé na loteria. Continuo nessa trilha de barro batido, mais estrada do que rua, donde se avistava a casa com história de Severino Procópio, seguida do hospital do pai de Babá, meu herói do vôlei, irmão do futuro prefeito Evaldo Cruz; ainda vejo o cinema São José, a rua Lino Gomes com Mazureik Morais atravessado na janela de casa, amigo da vida toda, pelo Açude Novo, subindo a 13 de maio e coroando a viagem que prometia ser longa ajudada pelos projetores do Capitólio, uma casa de sonhos.