Era para ter vindo antes, mas antes tarde do que nunca. Finalmente, a Academia Brasileira de Letras abriu seus sonolentos olhos para enxergar a obra da mineira Adélia Prado, para muitos a maior poeta viva do Brasil. Ela não é nenhuma estreante e já tem em torno de vinte livros publicados, todos bem acolhidos pela crítica e pelo público. Já era, portanto, para a ABL ter lhe premiado antes, muito antes. Mas essas coisas da vida literária são assim mesmo, sabemos. Há muitas interferências extraliterárias nas decisões das instituições culturais e é por isso que um Jorge Luís Borges e um Philip Roth, por exemplo, morreram sem ganhar o Nobel, enquanto outros, menores, embolsaram o grande prêmio. Que fazer?
Adélia Prado, em três momentos de sua trajetória. ▪ Imagens de divulgação
O prêmio concedido a Adélia foi pelo conjunto da obra. Uma espécie de consagração institucional que, para ser completa, deveria ser acompanhada por um convite para ingresso na Academia em próxima vaga, sem precisar de eleição. A ABL só teria a ganhar. A poeta, nem tanto, salvo se fosse vaidosa, o que não é o caso, certamente. Adélia é discreta e dispensa os holofotes da mundanidade literária. Vive desde sempre em Divinópolis, Minas Gerais, cuidando de sua casa, de seu marido José e de seu jardim. Está idosa, com cabelos embranquecidos há anos, antes que isso virasse moda entre as mulheres. Pergunto-me: será que ela aceitaria ingressar na ABL? Ou educadamente declinaria da suposta honraria, preferindo ficar no seu canto sombreado, tal qual o anjo torto de Drummond, seu mestre?Repito: Adélia Prado está com 88 anos. Precisariam ter demorado tanto para reconhecer o valor de sua já celebrada obra? Pode-se afirmar que por pouco a alcançaram ainda viva e lúcida, capaz de se alegrar com a premiação. Esta é a realidade dos fatos, sabe-se. Mas as instituições parecem não saber – e em muitos casos vão protelando essas reverências até que … é muito tarde. Tchau. O ex-futuro homenageado foi-se para nunca mais e não há homenagem póstuma que compense a omissão imperdoável.
Esse prêmio foi criado em 1941. Muita gente merecedora não o recebeu desde então. Não me lembro, por exemplo, de Carlos Drummond de Andrade tê-lo recebido. Será que não? E Thiago de Mello, morto recentemente, terá recebido? Se não, nos dois casos não há desculpa para o descaso. Não há mesmo. E isso desmerece a entidade premiadora, pois esta tem mais a ganhar com a concessão da láurea do que os eventuais premiados. Estes, com a obra devidamente consolidada e respeitada, já possuem a maior de todas as distinções: a admiração geral, garantidora da posteridade. Que é o que fica – e o que importa —, no final das contas.
O padrinho literário de Adélia Prado, sabe-se, foi seu coestaduano Drummond. Um belo dia cai nas mãos do itabirano esquivo, levados pelo também mineiro e poeta Affonso Romano de Sant’Anna, uns poemas daquela até então anônima dona de casa de Divinópolis. E o mestre se encantou – e apregoou publicamente seu encantamento. E foi o que bastou para o início da carreira literária da poeta, ela também reservadíssima na vida pessoal, tal qual o padrinho ilustre e inesperado. Abriram-se então as portas para o primeiro livro de Adélia, Bagagem, de 1976. E a partir daí, o resto é história.
Por falar em Affonso Romano de Sant'Anna, considero-o, com Adélia Prado, um dos maiores poetas brasileiros vivos da atualidade. Também idoso e infelizmente enfermo, segundo me disseram. E igualmente merecedor do Prêmio Machado de Assis, por sua extensa obra poética, ensaística e cronística. Não sei se lhe concederam; parece que não.
Na matéria do jornal O Globo de 21/6/2024, anunciadora do prêmio concedido a Adélia Prado, lê-se o seguinte: “Ela é conhecida por escrever do ponto de vista de mulheres dedicadas à família, assombradas pela morte, que gostam de sexo e temem a Deus.”. Vejam só. Que reducionismo! Que falta de visão crítica! E isso num dos mais importantes jornais do país. Ah, meu Deus, se Adélia fosse só isso! É claro que ela escreve do ponto de vista das mulheres, pois ela é assumidamente mulher, mas esta característica não significa que ela também não escreva para os homens e para todo mundo, enfim. Os grandes artistas não possuem público específico e restrito. E se o possuem é porque não grandes artistas. É simples assim. Assombradas pela morte? Não, mas meditadoras sobre a morte, esse tema incontornável, como são todas as pessoas sensíveis e dotadas de um mínimo de inteligência. Que gostam de sexo? Dito assim, com essa crueza, é de se pensar que a poeta é uma ninfomaníaca praticante. E que temem a Deus? Sim, mas sem carolice nem proselitismo. A poeta apenas proclama corajosamente sua fé, nestes nossos tempos incréus e intolerantes. Adélia Prado é muito mais do que isso que o jornal falou. Ela é imensa, universal e atemporal, como são os grandes escritores.
Só faltou dizer-se que ela escreve do ponto de vista das donas de casa. Porque efetivamente – e com muito orgulho – ela também o é. Dona de casa, sim senhor. Bem do jeito mineiro de ser. E mineiro do interior, o autêntico. Quantos poemas escritos sobre esse tema. Mas a partir do olhar especial da poeta, o único capaz de alçar o assunto aparentemente trivial às esferas mais altas da criação artística de valor.
A propósito, não poderia deixar de citar o escritor austríaco, nascido na Holanda, Thomas Bernhard, dos maiores do século XX. Contestador declarado do establishment austríaco, mesmo assim foi premiado na Áustria mais de uma vez, chegando até a publicar um livro justamente com o título Meus prêmios, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2009, com tradução de Sérgio Tellaroli. Nesta obra, o autor declara expressa e provocativamente que, a despeito de não valorizá-los por si mesmos, não deixa de receber os prêmios que lhe são atribuídos por conta dos respectivos numerários, os quais lhe permitem trocar de carro de vez em quando.
Muito justa, portanto, a láurea concedida agora a Adélia Prado, que vem generosamente acompanhada de cem mil reais. O prêmio depõe a favor da ABL e dos intelectuais brasileiros em geral. Como dito, a poeta não precisa dele, pois escreveu uma obra imortal por si mesma. Mas ele é bem-vindo, claro. Desde que não esqueçamos que só os tolos e os medíocres se deslumbram com premiações. O que não é obviamente o caso da divina mineira de Divinópolis.