Quando são feitas listas com os principais escritores paraibanos o cronista, novelista e romancista José Vieira, quase sempre, é esquecido, apesar de sua obra ter tido referências elogiosas dos principais críticos literários do país na sua época, como José Veríssimo, João Ribeiro, Agripino Grieco, Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde), Álvaro Lins, Valdemar Cavalcanti, Brito Broca, Wilson Martins e Antônio Cândido.
mm José Vieira nasceu, em 1880, em Mamanguape. Ficou órfão muito jovem e, conforme um perfil biográfico elaborado pelo pesquisador e historiador Eduardo Martins, “fora obrigado a trabalhar no comércio, em profissão modesta, até os dezoito anos, quando ingressou num curso noturno recém-fundado e destinado aos comerciários”. Naquela época, Mamanguape que já fora a segunda cidade da então Província da Paraíba, em população e comércio - que era feito diretamente com o Recife - entrara em um ciclo de declínio e, como disse José Américo de Almeida, os olhos de José Vieira “se abriram desde logo para um quadro de decadência e de ruína. Seu berço pobre também não poderia embalar esperanças” o que fez com que ele deixasse a cidade “à procura de sua estrela que podia estar brilhando em outros céus”.
José Vieira, inicialmente, se mudou para a capital da Paraíba, onde se matriculou no Liceu Paraibano em um curso preparatório para tentar ingressar na Faculdade de Direito do Recife. Não chegou a concluir os preparatórios na Paraíba e, em uma nova mudança, foi para a capital pernambucana. Passou pouco tempo no Recife e se transferiu para o Ceará atendendo um convite do escritor e político paraibano José Rodrigues de Carvalho. Em Fortaleza, José Vieira ingressou no curso de Direito, fez parte da direção de um colégio e iniciou sua produção literária. Para Rodrigues de Carvalho:
José Vieira, humilde guarda-livros, timido, modesto e obscuro, iniciava-se com o brilho fugidio do vagalume que tremeluz furtivamente. Eram contos, escriptos de pura ficção, sonêtos nostalgicos, tudo revelando alma, sentimento, apuro de linguagem, esthetica em summa.”
A União, 1923
Convidado por paraibanos que militavam na imprensa de Belém, José Vieira se mudou para o Pará, mas durou apenas um ano a sua permanência na cidade. Nas palavras de José Américo de Almeida, ele foi outra vez “à procura de sua estrela que podia estar brilhando em outros céus” e o Rio de Janeiro, a capital federal, o centro cultural do país, onde se publicavam os principais jornais do Brasil, seria a sua próxima parada.
O escritor Francisco de Assis Barbosa escreveu que José Vieira chegou ao Rio de Janeiro “pobre, feio e tímido, não trazia pistolão, nem mesmo um diploma de bacharel.Como tinha talento e sabia escrever deu-lhe a mão Mario Cattaruzza” que era um influente jornalista do Correio da Manhã, o mais importante jornal do país na época. Cattaruzza foi um dos personagens usados, com nomes fictícios, por Lima Barreto no seu livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha. No Rio, Vieira passou a cobrir as sessões da Câmara dos Deputados e conta-se que após as suas primeiras matérias para o jornal o cronista João do Rio teria ido procurá-lo na redação para elogiá-lo pela sua forma de cobertura dos trabalhos da Câmara. Vieira faria a crônica parlamentar por cerca de cinco anos.
Em 1913, José Vieira publicou o seu primeiro livro, A Cadeia Velha – Memória da Câmara dos Deputados. A Cadeia Velha era o prédio onde funcionou por quase 90 anos (1826-1914) a Câmara dos Deputados. Anteriormente, se instalara na edificação uma cadeia onde esteve aprisionado Tiradentes e que de lá foi retirado para ser enforcado. No local, foi construído o Palácio Tiradentes, atual sede da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O período abordado por Vieira no A Cadeia Velha foi aquele no qual se sobressaia no Congresso o senador gaúcho Pinheiro Machado, o “chefe dos chefes”, que “distribuía pistolões, empregos, elegia deputados, reconhecia senadores e dava até ordens ao Presidente da República”, como escreveu Francisco de Assis Barbosa. O livro de Vieira foi elogiado por José Veríssimo que considerou que a obra poderia “sempre ser consultada”. Em 1980, o Senado Federal publicou uma segunda edição do livro e na apresentação da obra o escritor e político baiano Luiz Viana Filho a considerou “um dos mais interessantes documentos sobre a vida parlamentar na Primeira República”.
A correção com que José Vieira relatava as sessões da Câmara para os jornais o levou a ser indicado para ocupar o cargo de redator dos debates da Casa. No Rio, Vieira concluiu o curso de Direito e passou a frequentar a vida literária da cidade. Entre os seus amigos estava o escritor Lima Barreto, conforme registrado por Francisco de Assis Barbosa, um dos principais biógrafos do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma.
Em 1913, José Vieira passou sete meses em tratamento em uma clínica na Suíça. Na volta para o Brasil, permaneceu certo tempo em Viseu, em Portugal, na casa do seu sogro, de onde escreveu uma série de crônicas que foram reunidas e publicadas, em 1918, com o título de Sol de Portugal. O livro foi bastante elogiado na imprensa carioca e na Paraíba causou grande impressão no jovem José Lins do Rêgo que o leu por influência de José Américo:
Era estudante quando li no ‘Diário do Estado’ de Paraíba, um artigo de José Américo de Almeida sobre um livro novo, ‘Sol de Portugal’, de autoria de José Vieira. Nada sabia do escritor, mas o livro que José Américo me deu a ler convenceu-me do entusiasmo do amigo. Era um admirável paisagista aquele que se embriagara com a cor e a luz das terras de Nobre. Nunca lera, a não ser em Eça de Queiroz, trechos mais vivos, mais coloridos sobre as aldeias, os vinhedos, as praias de Portugal. Tinha razão José Américo. Havia um escritor magnífico em José Vieira”.
José Vieira somente publicaria a sua primeira obra ficcional em 1923, o romance O Livro de Thilda. As críticas, novamente, foram favoráveis ao texto de Vieira. O temido crítico literário Agripino Grieco sentenciou em O Jornal:
“Cumpre-nos agora frizar que a maneira literaria do sr. José Vieira, o seu processo, por assim dizer, frio e cinzento de escrever, parece-nos mais pessoal do que pretendem os criticos que viram nelle apenas um discipulo de Machado de Assis [...] O seu geito de romancear romantizando é, sem duvida, digno de attenção. Trata-se de um romancista authentico, de um talento com que se deve contar”.
Em 1924, José Vieira publicou, nos meses de junho e julho na revista paraibana Era Nova, a novela Ladrão de Moças e, somente após um intervalo de uma década, apareceria uma das suas obras mais marcantes, O Bota-Abaixo (Crônica de 1904). A trama do romance acontece no período em que ocorreram as obras de reforma urbanística na área central do Rio de Janeiro implementadas na administração do prefeito Pereira Passos sob a orientação do Presidente Rodrigues Alves. O O Bota-Abaixo somente teria uma segunda edição em 2019. Na opinião do professor José Roberto Fernandes Castilho, que organizou a obra e escreveu uma estudo introdutório, o livro de José Vieira “é o menos lido dos romances ‘clássicos’ brasileiros” e acrescentou:
Tomo o termo ‘clássico’ com o sentido de muito citado e muito referido: todo trabalho de peso sobre a remodelação do Rio de Janeiro que marcou o começo do século XX o refere e o cita [...] Tanto assim que a melhor obra até hoje escrita sobre o tema – Pereira Passos – Um Haussmann Tropical, de Jaime Larry Benchimol (1990) – não só cita o livro como transcreve longos trechos aduzindo que as grandes obras executadas no Rio de Janeiro é que dão ‘substância ao perfil e às ações dos personagens’.”
Em 1938, Vieira publicou pela Editora José Olympio, com a capa elaborada pelo paraibano Tomás Santa Rosa, um novo romance: Espelho de Casados. A obra foi elogiada pelo crítico Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que escreveu:
“Digamos desde logo que o sr. José Vieira não fez um romance sobre a perna [...] Como todo livro profundamente meditado e cuidadosamente escrito e polido, sem a ansia de sair a lume quanto antes, é um livro minucioso e meticuloso. Não ha coisas inuteis, não ha palavras perdidas, não ha episodios meramente accidentaes ou pittorescos, não ha dispersão de idéas e factos, nem trechos de estylo para effeito. Ha uma extrema unidade, tanto no thema como na expressão. O livro é um bloco só [...] Todo o livro é assim empolgante”.
Com o fechamento do Congresso, em 1937, pela ditadura do Estado Novo, José Vieira passou a trabalhar no que viria a ser o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP do governo federal. Cabia a Vieira a revisão e o “tratamento literário” dos discursos de Getúlio Vargas, muitos deles feitos de improviso e a partir dos quais o escritor paraibano elaborava os textos com base em simples notas taquigráficas. Esses discursos de Vargas foram publicados em vários volumes sob o título de A Nova Política para o Brasil e acabaram envolvendo José Vieira em um episódio pitoresco.
No início da década de 1940, a Academia Brasileira de Letras pleiteava do governo federal a cessão em definitivo do terreno, que era propriedade da União, onde até hoje funciona a Academia. Surgiu então a ideia, “para facilitar as coisas”, de tornar Getúlio Vargas um dos acadêmicos. Havia dois problemas a serem superados. O primeiro era que não havia nenhuma vaga aberta. Do vasto anedotário que existe sobre Vargas, a solução teria vindo do poeta pernambucano Olegário Mariano que num surto de puxa-saquismo teria proposto se suicidar para abrir a vaga para o ditador. Um providencial falecimento de um acadêmico evitou o “suicídio” do poeta. O episódio, por conta da censura aos jornais, foi descrito em forma de sátira por Osório Borba em uma crônica depois publicada nos seu livro A Comédia Literária.
O outro problema a ser solucionado para que Getúlio Vargas ocupasse uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras era a exigência de que o candidato à vaga aberta tivesse publicado pelo menos um livro e Vargas nunca tinha escrito nada. Foi aí que se lembraram dos discursos de Getúlio Vargas que José Vieira dava uma “arrumada literária”, E foi com essa ajuda de Vieira que Getúlio se tornou imortal por votação praticamente unânime dos acadêmicos, antes mesmo de sua morte trágica em 1954 que o imortalizou para a história do Brasil.
Nos anos de 1941 e 1942, José Vieira publicou em duas edições da Revista Brasileira, que era editada pela Academia Brasileira de Letras, o Romance da Solteira. Em 1944, sairia a obra que foi o maior êxito literário de Vieira: Vida e Aventura de Pedro Malasarte. O livro, que teve a capa criada por Santa Rosa viria a ter uma segunda edição, em 1980, pela Editora A União, em comemoração ao centenário de nascimento do escritor. Quando da publicação da primeira edição de Pedro Malasarte o consagrado crítico Antônio Cândido classificou-a como uma “obra original, clássica ao seu modo, e de características invulgares nas nossas letras”. O escritor Oswald de Andrade escreveu sobre o livro que “da primeira à última página [...] o escritor nordestino humaniza com tal força e tal verdade e tão boa prosa, a figura lendária, que nos dá uma autêntica obra-prima”.
Em novembro de 1945, José Vieira foi nomeado Diretor do Expediente da Presidência da República, cargo no qual permaneceu até a sua morte. Em 1947, por decisão unânime dos acadêmicos, Vieira foi designado Diretor da Secretaria da Academia Brasileira de Letras. Em julho de 1948, José Vieira faleceu no Rio de Janeiro aos 68 anos de idade. Poucos dias antes da sua morte, chegava às livrarias a sua última produção literária, o romance Um reformador na cidade do vício. A obra de José Vieira, a partir daí, caiu em total esquecimento, excluindo-se apenas os pequenos interregnos quando foram publicadas as segundas edições de Vida e Aventura de Pedro Malasarte e de O Bota-Abaixo. O que teria motivado essa omissão sobre a obra do romancista paraibano? Ivan Bichara em um ensaio sobre José Vieira formulou outra pergunta: “Por que um autor é consagrado e outro mestre do mesmo ofício é esquecido?”
Gonzaga Rodrigues também procurava em uma crônica o motivo para o esquecimento da obra de José Vieira:
“José Vieira teria falhado em sua arte? Sob esse aspecto a falha também teria sido da crítica. Não foram menores, entretanto, os que bem o receberam em seu tempo: Tristão de Ataíde, Grieco, seguidos de Antônio Cândido, Valdemar Cavalcanti, Wilson Martins, Álvaro Lins, Adonias Filho, gente que não admite suspeições.”
Na mesma crônica, publicada em maio de 2023, Gonzaga Rodrigues lamentava a não inclusão de José Vieira entre os escritores da série A Paraíba na Literatura publicada pela Editora A União: “Acabamos de editar quatro belíssimas coletâneas abrangendo novos e velhos das nossas letras, um empreendimento cultural do governo do Estado através de A União, e novamente sobramos em Vieira”.
Felizmente, as lembranças de Gonzaga Rodrigues alcançaram Naná Garcez e William Costa na EPC e A União e o Volume V da série A Paraíba na Literatura, lançado em abril deste ano, contemplou um capítulo sobre o esquecido escritor paraibano José Vieira.
Para o crítico literário Valdemar Cavalcanti, José Vieira “realizou no campo da ficção brasileira uma obra que seria profundamente injusto esquecer ou subestimar”, acrescentando:
“Não a procurem os que desejam no romance os transbordamentos da imaginação, a incontinência – ou a suposta incontinência – da força criadora, o novo, o imprevisto, o original. Que a leiam, porém, os que apreciam o gênero, a acuidade psicológica, o senso da medida, a sobriedade de construção, o apuro da forma”.