Acho que acontece a todos nós. Temos, desde a infância, recantos preferidos das nossas casas e quintais e, em razão disso, lembranças que vão e voltam. Eu mesmo já quis muito uma goiabeira em detrimento de um pé de pinha. A primeira, de galhos mais fortes, permitiu-me a instalação horizontal de uma banda de porta, a dois metros do chão, para as brincadeiras infantis. Dali, ora eu montava guarda contra o bando de índios vistos
na tela do pequeno cinema por mim frequentado, ora o escritório de onde dirigia o armazém de secos e molhados onde meu irmão, dois anos mais novo, atendia, no andar inferior, à imaginária clientela.
Nós nos comunicávamos por telefones feitos com dois copos de plástico perfurados para neles prender, com nós sucessivos, um pedaço de cordão. Na vez de um falar, o outro tinha seu “fone” ao ouvido. Tensionado, o fio conduzia vibrações fraquinhas a cada copo. O volume natural das nossas vozes era o que nos permitia cada conversa. Creiam: isso foi um dos brinquedos mais recorrentes no meu tempo de menino.
Num dia de vento forte, quase despenquei com escritório e tudo na cabeça do mano. Um dos galhos estalou antes da quebra, dando tempo para a fuga do meu ajudante e para que eu me pendurasse em galho íntegro. A percepção do quanto aquilo era perigoso nos fez encerrar a brincadeira. De uns tempos para cá, aquela árvore e aquele cantinho do meu quintal me voltam à memória com maior frequência.
Nenhum ambiente daquela velha casa me atraiu tanto quanto o alpendre dos fundos onde meu pai instalou um arremedo de oficina com serras, martelos, alicates, chaves de fenda e de boca, tarracha para abertura de roscas e, o melhor de tudo, um torno mecânico. Feliz proprietário de um modelo antigo da Companhia Indian de Motocicletas, ele próprio consertava, ali mesmo, as peças mais simples ocasionalmente quebradas.
Mas preciso contar que na adolescência eu pouco lembrava disso. Somente depois, no transcurso dos anos, é que passei a sentir falta dessas coisas. Falo, ainda, do fogão a lenha com sua chaminé, do nosso quarto com janela para a rua, da sala de visita com cadeiras de palhinha e do pequeno tanque para a água dos gastos domésticos, onde certo dia joguei uma dúzia de guarus, invenção que me rendeu algumas chineladas.
Antes dessas saudades, eu passava pela cozinha, sala, quartos e pelo corredor indispensável a todos os acessos, na casa paterna, sem muito me aperceber da máquina de costura, da cadeira de balanço, do petisqueiro, da penteadeira, ou das prateleiras com seus conteúdos.
Surpreso, vejo, agora, que tais desatenções não minguam com o avanço dos anos. É como se cada etapa da vida contivesse seus esquecimentos momentâneos, mesmo quando a casa se torna menor, mais apertada e perde seu jardim e seu quintal. É este, exatamente, o caso dos apartamentos modernos para onde a vida e as circunstâncias empurraram muitos de nós. Mas, desta vez, não sei dizer se isso ocorre a todos os que acumulam os anos e as ocupações que hoje ainda tenho. Inclino-me a pensar que sejam abstrações apenas minhas.
Como eu gostei de voltar a perceber tudo isso que, a bem da verdade, nunca me saíra do alcance das vistas.Pois bem, neste começo das férias que há muito eu não tirava, tive a atenção despertada para aquilo que das minhas vistas e sentidos havia desaparecido na primeira década do casamento. Dispúnhamos, então, eu e os meus, de espaço doméstico maior, por onde os três filhos se arrastaram: 200 metros quadrados, com direito a jardim e quintal.
Acontece que tudo muda. O tempo corre, os filhos crescem e se vão, a idade avança e com ela nos chegam os achaques naturais aos septuagenários. Grande demais para que pudesse ser bem cuidada pelos dois cansados ocupantes que então lhe restaram, a casa que de início abrigou a companheira desejada e os filhos que tivemos foi trocada há seis anos por algo menor, mais seguro e de limpeza mais fácil.
Eis que nos 92 metros do ambiente em que hoje me dependuro, volto a notar os santinhos e as mocinhas que Dona Miriam abriga numa de suas prateleiras. À saída com o neto para uma lanchonete do bairro, bateram-me, frente a frente, os olhos grandes de uma menina sobre uma pedra rósea com seu vestido vermelho.
Como eu pude desaperceber da sua existência? Ao reencontrá-la, veio-me, então, a canção de Gilberto Gil: “Fui passear na roça/encontrei Madalena/sentada numa pedra/comendo farinha seca”. São versos que falam de outras desatenções. Neste caso, da injustiça e da desigualdade sociais, expliquei a Miguelzinho. A Madalena de Gil chorava e sua mãe a consolava dizendo assim: “Pobre não tem valor, pobre é sofredor e quem ajuda é o Senhor do Bonfim”.
Sem pressa, reparei que essa garota tinha como vizinhos a Sagrada Família e um São Francisco ao qual não faltavam dois pássaros e um pequeno cervo. Também, uma santa que não identifico entre as muitas transfigurações de Maria e, ainda, São Miguel Arcanjo com seu escudo. Acho que, nos anos de 1990, ele tinha uma espada na mão direita, agora faltosa. As asas não o livraram dos danos decorrentes da queda de um ponto alto na varanda da casa antiga, de onde se mostrava a residentes e visitantes. Até hoje, não se sabe se foi dali derrubado por um pé de vento.
Como eu gostei de voltar a perceber tudo isso que, a bem da verdade, nunca me saíra do alcance das vistas. Digamos que a cegueira temporária da qual fui acometido resultou de saudades mais velhas e profundas: as advindas da primeira consciência da vida e de um mundo que então cabia nos quintais de antigamente.