A história do nosso tempo e de nossa gente sempre esteve atrelada ao imaginário popular, ao anedotário, ao cancioneiro regional. A cultura nordestina, a sertaneja em particular, é o exemplo vivo e mais denso desta herança que se manifesta desde tempos ancestrais, numa sucessão de pai para filhos. São histórias recolhidas ao acaso, das querelas, das lendas sertanejas, da poesia de cordel, dos poetas repentistas, que enriquecem o nosso folclore; quando a verdade pouco importa, onde o real se confunde com o imaginário.
Qualquer caso ou acontecimento vale mais pela forma, pelo ornato, pelo brilho que o narrador empresta. Dizem até que o mais importante é a versão, o fato não importa tanto.
A criatividade desta gente não tem limites. Muitas vezes são narrativas fabulosas de casos triviais, que normalmente não teriam a menor relevância, não fossem os adornos, os enfeites, que cada um imprime, e a maneira peculiar de tecer a história. Não faltam os exageros, os gracejos, os ditos prosaicos. Mente fértil, cada contador se esmera na sua versão; cada um com seu toque hilário.
Muitas dessas histórias não passam de galhofas, disse-que-disse, boatos, e são esquecidas no decorrer do tempo; outras, porém, no boca a boca, na tradição oral, ganham formas e foros de verdade.
"De tanto se repetir uma mentira, ela torna-se verdade."
Joseph Goebbels
Uma história fantasiosa que desafia o tempo, ganhou o mundo, e ainda hoje é aceita pacificamente por leigos e estudiosos, — inclusive historiadores de renome, que por negligenciarem as pesquisas, deixaram-se enganar — trata-se da propalada invasão a Mossoró, em junho de 1927, pelo bando de Lampião. Nada mais imaginoso e fantasioso. Não há nenhuma prova neste sentido. O cangaceiro Lampião nunca pôs os pés em terras potiguaras, tudo não passou de invencionice e conveniência econômica — alavancou o turismo na cidade. A região de Mossoró não era palco para os seus desmandos; havia muitos impedimentos a considerar: a situação geográfica da cidade próxima ao litoral— o bafo do atlântico assustava a gente do cangaço,— a dificuldade de se mover no meio daquele povão em terras estranhas. E para a realização da longa jornada, carecia de bons contatos e do apoio essencial de coiteiros, com armas, munições, mantimentos e, sobretudo, de boas informações, coisas que Lampião não dispunha por aquelas bandas. Também não era prática comum do cangaço, percorrer longas distâncias, de rota batida, no caso, mais de quinhentos quilômetros, entre a região do Pajeú (PE), e Mossoró (RN), e deixar incólumes durante a travessia, dezenas de cidades e povoações, algumas de porte médio como Cajazeiras, Sousa, Patos, Pombal, centenas de engenhos de cana–de-açúcar e abastados fazendeiros e pecuaristas. Ninguém nunca apontou um combate do rei do cangaço, uma invasão a qualquer cidade ou vila, durante todo esse suposto percurso, e também não ser alcançado por nenhuma das volantes que viviam no seu encalço. Mais uma razão para desmascarar essa fantasia muito bem engendrada. O bando já surge para a história nas imediações de Mossoró. Por certo esteve invisível todo esse tempão. Um engodo sem tamanho. Para enrascar ainda mais, a cidade de Mossoró distava apenas uns sessenta (60) quilômetros de Areia Branca, pequena aldeia de pescadores plantada à beira do oceano, portanto, no litoral do Rio Grande do Norte.
Os cangaceiros, filhos broncos dos sertões, gerados e criados nos grotões e abas de serras, nas quebradas, socados naquelas brenhas, entocados como animais ferozes, sentiam pavor das regiões litorâneas e seus arredores de densa povoação, rasgadas por extensas estradas de rodagem, do ronco do caminhão, do fio do telégrafo. Eram bichos do mato. Quanto mais enfurnados estivessem, mais seguros e de bem se sentiam. Mossoró e circunvizinhança já exalavam o cheiro da maresia crescente, era muito para aqueles matutos de pés rachados.
Quando se estende o mapa sobre a mesa e verifica as possíveis rotas entre o Pajéu (PE) onde Lampião se homiziava na época, e a região de Mossoró-RN, e quem se der ao trabalho de cotejar com a verdade dos fatos, então verá que tudo foi fruto da imaginação.
Em março de 1926, um ano antes da suposta invasão a Mossoró, Lampião e seu bando deram entrada em Juazeiro do Norte, procedente de Vila Bela, hoje, Serra Talhada-PE, a pedido de Floro Bartolomeu — eminência parda — para formar no ¨Batalhão Patriótico¨ no combate a Coluna Prestes, e pedir a bênção e a proteção ao padim padre Cícero Romão Batista. Depois que lhe foi concedido com o aval do funcionário público federal, agrônomo Pedro de Albuquerque Uchoa, a patente de capitão, Lampião, à frente do seu bando, deixou Juazeiro do Norte, e se embrenhou de volta para Pernambuco. Não pôs mais os pés no Ceará. Portanto, o Ceará não serviu de rota para Mossoró.
Do vale do Pajeú (PE) onde o bando de Lampião se encontrava à época, para alcançar Mossoró, de rota batida, era necessário cruzar a fronteira que o separa da Paraíba e penetrar no município de Conceição do Piancó ou na região de Princesa Isabel, os dois únicos municípios da Paraíba a fazer extrema, na época, com a região do Pajeú. E também era onde o bando se abrigava em momentos de aperto, quando as volantes fechavam o cerco. De Conceição do Piancó poderia escolher uma, entre três trilhas: a primeira, levava para o cariri cearense através da fronteira oeste com o município de Mauriti-CE, uma rota muito longa e improvável. As pesquisas mostram que depois da visita ao padre Cícero no Juazeiro, Lampião, não esteve mais no Ceará; outro caminho possível, seria deixar o vale do Piancó, seguir para Bonito de Santa Fé e alcançar Cajazeiras-PB, e de lá ir em direção á cidade de Luis Gomes-RN, que distava pouco mais de duzentos quilômetros de Mossoró. Pura balela, em nenhuma dessas cidades citadas existe qualquer referência, qualquer traço da passagem do cangaceiro Lampião – Sabino Gomes, sim, e seu subgrupo foi derrotado em Cajazeiras, em setembro de 1926. Outra opção possível, a terceira, seria se enfiar no miolo do vale do Piancó, cruzar cidades como Conceição, Misericórdia, hoje, Itaporanga, Piancó, Coremas e chegar a Pombal, de lá, seguir em demanda do sertão de Catolé do Rocha e ultrapassar a fronteira com o R. G. do Norte, depois de deixar para trás dezenas de cidades e povoações. Também não se faz em nenhuma dessas cidades e adjacências qualquer referência a passagem do famigerado, como se sua presença ou aproximação não causassem rebuliço e sobressalto à população indefesa.
Outros caminhos se estendiam da vasta região de Princesa Isabel-PB, que incluía Manaíra (antiga Alagoa Nova), São José de Princesa, Tavares e Juru, vilarejos na fronteira com Pernambuco. Há fortes indicações que o bando de Lampião fez incursões em Princesa Isabel, onde prestou e recebeu favores de abastados coronéis da região. Mas, Lampião, em pessoa, não foi além, não deu um passo em nenhuma ocasião na direção de Mossoró. Se tivesse a intenção de seguir para o R. G. do Norte seria inevitável cruzar o vale do Piancó, onde a presença do celerado, mesmo de passagem, é negada de forma peremptória por sucessivas gerações e, por total ausência de provas ou indícios.
Na verdade, a Paraíba não saiu ilesa às ações do temível bando de Lampião. Mesmo sem o comando do chefe, elementos do bando praticaram horrores em duas importantes cidades: em Sousa-PB, julho de 1924, um subgrupo do bando de Lampião, chefiado por seus irmãos Levino e Antonio Ferreira, se uniram aos jagunços do afamado Chico Pereira, em briga de vida ou morte contra a família Mariz, que mandava na política local e tinha grande prestígio na capital do Estado. Na manhã do dia 27 de julho de 1924, invadiram a próspera cidade. A população apanhada de surpresa não ofereceu nenhuma resistência aos cangaceiros. Foi um horror. Na falta de um comando firme, os cabras davam vazão ao instinto mais primitivo; mataram, saquearam, deixaram a cidade em petição de miséria. Até o juiz de direito, Dr. Arquimedes Souto Maior foi seviciado em praça pública, escapou de morrer graças à intervenção de Chico Pereira, como está nos autos do processo.
O outro ataque se deu na cidade de Cajazeiras-PB, alto sertão da Paraíba, em setembro de 1926 dessa vez, praticado por Sabino Gomes, braço direito de Lampião, e seu subgrupo, na ocasião, composto de vinte e poucos cangaceiros. Os bandidos se deram mal. Informados com antecedência da marcha dos bandoleiros, alguns aguerridos habitantes se uniram a pequena força policial e organizaram a resistência. No dia indicado, entrincheiraram-se em locais estratégicos da cidade. A espera foi curta. No entardecer do dia 27, Sabino Gomes e seus cabras deram entrada na cidade. O banquete não foi o esperado. Foram saudados à bala. Saraivadas partiam de vários pontos. Os cangaceiros, sujeitos calejados e tinhosos, não se abalaram. Colados às paredes, espremidos nos vãos das portas, esparramados pelo chão poeirento, avançaram com força redobrada. O tiroteio intenso se estendeu por ruas e ruelas.
Depois de mais de duas horas de fogo cruzado, os cangaceiros enfraquecidos pelas baixas em suas fileiras, e sem que os defensores dessem sinais de fraqueza, e com o sol se recolhendo, bateram em retirada.
São esses os únicos registros da presença de Lampião na Paraíba e no Ceará, os caminhos percorridos pelo bando. O rei do cangaço, em pessoa, esteve apenas nas cidades de Conceição do Piancó e em Princesa Isabel, vizinhas do vale do Pajeú-PE, mas, não houve nenhum embate relevante sob seu comando.
Portanto, a passagem de Lampião pelos Estados da Paraíba em busca do R. G. do Norte, para atacar Mossoró em junho de 1927, deve ter se dado de forma invisível. A história não registra nenhum combate que se comprove.
Mossoró se deu bem com a história fantasiosa. Fatura alto com o turismo do cangaço.