É um luxo. E sempre foi. Principalmente agora, nestes nossos tempos despudorados. Para alguns, tão importante e necessário quanto o si...

Privacidade

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É um luxo. E sempre foi. Principalmente agora, nestes nossos tempos despudorados. Para alguns, tão importante e necessário quanto o silêncio, outro requinte civilizacional. Mas só para alguns, parece. A maioria, o rebanho, prefere a exposição e persegue a exposição, a “mostração”, como diria minha sábia avó, referindo-se aos “mostrados” de seu tempo, ou seja, aqueles e aquelas que gostavam de se “mostrar”, de aparecer, de se exibir, como se sua inerente mediocridade não combinasse (e até exigisse) com o mais absoluto anonimato.

Vivemos de fato tempos despudorados. Isto é, tempos em que o pudor, aquilo que o dicionário define como “o sentimento de vergonha ou de constrangimento causado por algo que se opõe aos costumes, à inocência ou à decência”, foi “cancelado”, já não se verifica na vida cotidiana de grande parte das pessoas. Pudor é recato, modéstia, consciente reserva. Que não significa necessariamente ser “metido a besta”, esnobe, elitista, mas que pode expressar também bom senso, autoestima e um certo modo de estar no mundo, sem chamar atenção para si, sem publicizar a vida pessoal e até mesmo a mais guardada intimidade. Mas quem se envergonha hoje em dia? Quem se constrange? As pessoas, jovens, homens, mulheres e idosos simplesmente perderam a vergonha, tornaram-se, por vontade própria, desavergonhados, não raro cínicos. E tudo isso em nome de quê?

Recentemente vi uma entrevista de uma conhecida atriz de televisão em que ela fez a apologia do sexo anal. Tudo bem, para quem não acha nada de mais se expor publicamente a esse ponto. Mas ela achou pouco e não usou em sua ousada confissão a expressão mais suave e elegante que seria “sexo anal”; ela fez questão de dizer, em alto e bom som, que “gostava de dar o...”, aquela palavrinha chula de duas letras. Não me choquei, mas me surpreendi com o despudor. Estarei sendo careta e moralista, leitor? Pergunto-me ensimesmado.

Reconheço, entretanto, para não ser injusto, que um certo tipo de privacidade, aquele que Virgínia Woolf chamou em célebre ensaio de “um quarto todo seu”, ou seja, um espaço físico privativo na casa onde vivemos, constitui ainda, no mundo todo, um privilégio das pessoas economicamente mais favorecidas, as quais em regra habitam casas e apartamentos mais espaçosos, capazes de assegurar aos membros da família um lugar próprio e individual. Os mais pobres, com famílias numerosas, como costuma acontecer, é óbvio que não têm meios de habitar moradias maiores, propiciadoras dessa espécie de privacidade. Todavia, sabemos, estes mesmos desprivilegiados, salvo exceções, não se preocupam também em resguardar a vida pessoal nas redes sociais que frequentam. Muito pelo contrário. Mas esse é, pelo que se vê, um mal de todas as classes e segmentos.

Imagino o desconforto das pessoas e famílias na Rússia soviética, obrigadas a compartilhar espaços exíguos, banheiros coletivos, não raro um único quarto para cinco ou mais moradores. Não precisou outra crueldade para os bolcheviques punirem burgueses e aristocratas russos, acostumados que estavam com amplas habitações. E diga-se, a propósito, que tal desconforto foi igualmente imposto, bem no espírito coletivista, aos proletários urbanos e rurais da época, também eles confinados, aos montes, como bichos, em lugares mínimos. Na Índia, por exemplo, ainda na atualidade a privacidade é privativa dos ricos. Os pobres muitas vezes têm de “realizar os atos mais privados, suas funções corporais, ao ar livre”. E que dizer dos favelados, moradores de barracos e dos sem-teto do mundo?

Virgínia Woolf, no ensaio citado, mostrou a falta de intimidade das mulheres inglesas de seu tempo que não possuíam um quarto para chamar de seu. Mostrou como essa privação espacial implicava em falta de privacidade física e moral daquelas que já sofriam outras modalidades de privações, situação sócio-cultural que a corajosa escritora denunciou e combateu ao seu modo.

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Virginia Woolf ▪ 1882—1941 / Fonte: Biblioteca de Harvard, via Wikimedia.
Lembremos também a inexistência de privacidade dos doentes e idosos incapazes de cuidar de si mesmos, tanto em casa como nos hospitais. Imaginemos a silenciosa e despercebida violência imposta aos mesmos nos banhos, nas limpezas íntimas e na simples nudez compulsória, indisfarçável pelas frágeis camisolas hospitalares. Para muitas pessoas mais sensíveis, essa exposição forçada constitui nada mais nada menos que uma absoluta “indignidade”, a perda da própria dignidade humana.

Salman Rushdie, o escritor anglo-indiano, famoso não só por sua obra literária, mas também pela fatwa (condenação à morte) que lhe dirigiu o aiatolá Khomeini, do Irã, por suposta blasfêmia contra a fé
islâmica em sua obra Os versos satânicos, escreveu o seguinte sobre o nosso assunto: “Existe uma felicidade profunda que prefere a privacidade, que floresce longe dos olhos do público, que não exige a validação de ser conhecida: uma felicidade que existe apenas para as pessoas felizes, que é, em si mesma, suficiente.”.

Sim, existe essa felicidade, mas parece que ela interessa a poucos, aos esquisitões que nada postam nas redes sociais, aqueles e aquelas dos quais nada se sabe, salvo aquilo que eles permitem que se saiba. Os que trafegam na contramão da manada que transformou “viver” e “postar” em palavras sinônimas. E se essa manada pudesse (não pode) gerar um filósofo, ele talvez sintetizasse sua discutível “sabedoria” numa frase mais discutível ainda: “Posto, logo existo”. Ou, o que dá no mesmo, “Existo, logo posto”. Nem Descartes entenderia.

Sabemos que existem aqueles e aquelas cujas profissões exigem a publicização da imagem pessoal. Os políticos (todos) e os artistas (alguns) não podem viver no anonimato. Compreende-se. Mas mesmo nesse nicho social há limites para a exposição pública. Nem os mais idiotas conseguem viver permanentemente à vista de outros idiotas, como se num eterno “Big Brother”.

Não se faz aqui, claro, a apologia dos eremitas e dos antissociais. Não. Pois conviver é preciso, relacionar-se com os outros é importante e frequentar comedidamente o mundo é necessário. A solidão só é saudável quando livremente escolhida e temporária. O silêncio também, salvo para alguns religiosos radicais. No mais, tudo é apenas bom senso, a mais democrática e a mais rara das sabedorias. E no bem senso se inclui, creio, a privacidade, essa sutil arte de ser feliz sem que ninguém mais precise ficar sabendo disso.

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  1. José Mário Espínola3/6/24 01:14

    A sua crônica chegou no dia em que eu estava reclamando a invasão do meu reino, o gabinete.
    Coisa de netos, que tiram sem pedir e não devolvem.
    Parabéns, Chaguinhas!

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  2. José Mário Espínola3/6/24 01:14

    A sua crônica chegou no dia em que eu estava reclamando a invasão do meu reino, o gabinete.
    Coisa de netos, que tiram sem pedir e não devolvem.
    Parabéns, Chaguinhas!

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  3. Anônimo3/6/24 07:06

    Obrigado, Laerte. Gil.

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  4. Anônimo3/6/24 07:07

    Obrigado, Lúcia. Gil.

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  5. Anônimo3/6/24 07:08

    Obrigado, José Mário. Gil.

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  6. Anônimo3/6/24 11:19

    Obrigado, Milton. Gil.

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  7. Anônimo4/6/24 06:56

    Obrigado, Leo. Gil.

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  8. Anônimo7/6/24 12:37

    Obrigado, Sérgio. Gil.

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