Acabei de ler o livro do húngaro Sándor Márai (2011), traduzido aqui em Portugal com o título As velas ardem até ao fim, por Mária Magdolna Demeter, leitura sugerida por Milton Marques, meu esposo, que, inclusive, já escreveu um artigo sobre o romance, mas numa perspectiva diferente da que intento tratar. A leitura me capturou por vários motivos, mas o principal deles foi o teor psicanalítico do cenário em que se desenrola o enredo, catártico para o personagem principal. Não foi à toa que Freud bebeu tanto da Literatura, fonte inexaurível para a análise das ocorrências humanas.
Dois amigos, Henrik e Konrád, cujas vidas se entrelaçam desde a infância, apesar das diferenças pessoais e sociais, têm suas vidas mudadas a partir de um evento ocorrido há quarenta e um anos e quarenta e três dias, divisor de águas e o qual separará os dois durante todo esse tempo, até que, finalmente, o encontro tão esperado ocorre.
O recorte feito para esta análise diz respeito à presença da palavra falada e do seu papel como mola propulsora da narrativa, pelo menos de grande parte dela, haja vista ser a via elaborativa pela qual Henrik consegue, enfim, resolver o conflito que o martirizou desde os trinta e dois aos setenta e três anos de idade, material psíquico-emocional que nunca pudera compartilhar com ninguém, tendo em vista o seu conteúdo. O ápice do diálogo entre os dois amigos quando se reencontram – que se trata mais de um monólogo, no qual Konrád parece ser apenas o espelho que Henrik precisava para alinhar tudo aquilo sobre o que já pensara, repensara, sentira e elaborara ao longo dos últimos quarenta e um anos, – são duas perguntas:
“A Krisztina sabia que tu querias matar-me naquela manhã, na caça?”
e
“se não tivesse sido aquela atracção penosa por uma mulher que morreu, qual teria sido o verdadeiro conteúdo da nossa vida?”.
e
“se não tivesse sido aquela atracção penosa por uma mulher que morreu, qual teria sido o verdadeiro conteúdo da nossa vida?”.
Quanto ao restante, Henrik já entendera. No entanto, foi preciso recordar, repetir e elaborar muitas vezes, mas, desta vez, fá-lo-á em voz alta, para ouvir a si mesmo, mais do que ao amigo, e assim, mais do que elaborar, reelaborar, dar outro formato, libertar-se do conflito com que vem lidando ao longo da vida. Até certo ponto, não deixa de ser trágico, no sentido grego do termo, ter esperado até o último momento para resolver a questão, que tomara praticamente a maior parte da sua existência, pois aos setenta e três anos, para ambos os personagens, só restava aguardar a morte. No entanto, diferentemente do contexto da tragédia grega, o conflito foi resolvido, a morte viria tranquilamente agora.
O romance começa com o general Henrik voltando para casa, vindo da vinha com o vinhateiro, após o engarrafamento do vinho. Já é meio-dia, e ao chegar, recebe das mãos do guarda-caça uma carta entregue por um mensageiro, reconhece a letra e, a seguir, coloca-a no bolso. Quando chega ao vestíbulo, lê a carta. Dá, então, ordens ao empregado, Kálman, para que prepare o coche para as seis horas daquele dia, deixe tudo brilhando e use a libré de gala. Segue para o seu quarto e lê novamente a carta. Consulta o calendário na parede, calcula o tempo e conclui que faz precisamente quarenta e um anos e quarenta e três dias desde a caçada, em dois de julho de mil oitocentos e noventa e nove.
Tudo pronto para receber o visitante. As alas do palácio, que há décadas não eram usadas, foram limpas e arrumadas, tudo colocado no lugar, como estava há quarenta e um anos. É o passado que continua presente, distante, mas ao mesmo tempo perto, vivo, conflituoso, doloroso, e é o momento de buscar varrer, limpar a poeira desse cenário, organizá-lo e deixá-lo lá, no lugar a que pertence. Também, a sala de jantar, com a mesma porcelana francesa, com os mesmos pratos servidos na outra ocasião, com o mesmo vinho, com as velas azuis sobre a mesa, que queimarão até o fim, até as cinzas... Foi o lugar da última reunião entre os três, Henrik, Krisztina, sua esposa, e Konrád, o último jantar antes da partida, ou fuga, do amigo. Nesse mesmo dia, pela manhã, os dois tinham ido à caça, como costumeiramente faziam. Foi aí que veio a reviravolta, e Henrik percebe a realidade, mas ainda não a verdade, que só virá a saber depois de quarenta e um anos e quarenta e três dias, ao passar a limpo a sua vida diante daquele a quem se vinculara visceralmente, é quando ele dá corpo, dá forma ao que antes era emoção, catexia, sentimento, interrogação. Ele se faz ver, através da palavra, da construção da narrativa a respeito de si próprio, do que sentiu e continua a sentir. Tudo que passou ainda está vivo, mas dissociado, e a narração lhe possibilitará integrar-se a essa história que é sua. Konrád o escuta, silenciosamente, e quase nada diz, pois não é preciso. Dá-se a cura pela fala!
Quanto ao momento da reviravolta, encontram-se os dois na floresta, eles têm um cervo na mira, Henrik está à frente de Kónrad, e sem olhar para trás, percebe o que acontece. Caçador experiente, Henrik sabe que o amigo está a lhe apontar a arma, um tiro, uma fração de segundo, e ele estará morto. Mas Kónrad se demora, o cervo foge e a oportunidade passa. Não conseguiu matá-lo. Voltam para a casa, mas nada falam sobre o ocorrido. À noite, como de hábito, vem para o jantar, o último antes de ir embora para os trópicos, sem se despedir, sem uma palavra. Tudo transcorre quase normalmente, Henrik, Konrád e Krisztina bebem, comem e conversam sobre vários assuntos, menos acerca dos eventos do dia respeitante à caça. Konrád não fala sobre a manhã que passaram juntos, o cervo que deixara escapar, algo que um caçador genuíno faria, não menciona que abandonou a caçada antes do tempo, que regressou à cidade sem deixar nenhum aviso, comportamento insólito, contra as convenções sociais. Além disso, pergunta a Krisztina sobre o livro que estava lendo quando entrou na sala, ela lia algo sobre os trópicos. Interroga-a sobre o efeito que a leitura exerceu sobre ela, quer saber como é a vida nos trópicos, interessa-se muito sobre o tema. Posteriormente, Henrik vem a saber que foi Konrád quem dera o livro a Krisztina.
Konrád vai embora, e Krisztina se retira quando ele sai. Sozinho na sala, Henrik começa a folhear o livro, cujo assunto nada tem a ver com a esposa. É aí que a realidade começa a se mostrar:
Todavia o livro fala, não só em inglês e não só sobre as condições de vida nos trópicos. Enquanto seguro o livro na mão, já passada a meia-noite, sozinho no meu quarto, uma vez que me deixaram as duas pessoas que me eram mais caras depois do meu pai, percebo de repente que esse livro também é um sinal. E percebo também, embora duma maneira confusa, algo diferente: as coisas começaram a falar-me nesse dia, aconteceu alguma coisa, a vida dirigiu-se a mim (p. 113).*
No outro dia, Henrik fica sabendo da partida de Konrád, que deixara uma carta ao regimento. Ambos eram militares, estudaram, formaram-se e serviram juntos. Eram mais do que irmãos, desde o primeiro momento ele fora recebido pela família do amigo como seu integrante. Henrik foi a casa de Konrád, na qual nunca havia estado, uma vez que nunca fora convidado, mas ali, naquele instante, descobriu o porquê. Sabe da ordenança, após pressioná-lo, que Krisztina havia estado ali muitas vezes. Ela chega, enfim, ao local, ouve de Henrik que Konrád partiu, e as únicas palavras que profere são: “Era um cobarde”. Foram as últimas palavras que ele ouviu da esposa. Dali em diante, não se falaram e nem se viram mais, oito anos depois ela morre.
E tudo aquilo a que as pessoas chamam “engano”, essa rebelião triste e enfadonha dos corpos contra uma situação e contra uma terceira pessoa, parece terrívelmente insignificante, como um acidente ou um mal-entendido. Na altura ainda não percebia isso. Estava ali, na casa secreta, como se observasse os indícios dum crime, olhava para os móveis, para o sofá-cama... sim, quando alguém é jovem, e a sua mulher o engana com o seu único amigo, mais íntimo que um irmão, naturalmente sente que o mundo se desmoronou à sua volta. Pensa que deve ser assim, porque os ciúmes, a decepção, a vaidade podem causar uma dor tremenda. Mas isso passa... passa duma maneira incompreensível, não de um dia para o outro, não, essa ira nem com os anos se apazigua – mas finalmente passa, da mesma forma que a vida (p. 138).*
A história do livro é envolvente, prende o leitor do começo ao fim. A gradação com que o ambiente vai sendo preparado para o grande momento, o encontro de Henrik com Konrád, mas, sobretudo, consigo mesmo, remete-me a uma sessão psicanalítica. O recebimento da carta é o incômodo inicial, a qual anuncia a chegada daquele cuja presença possibilitará o enfrentamento da realidade, dos fatos, em busca da verdade. A limpeza dos cômodos e dos objetos, que há décadas não eram usados nem visitados, alude à reorganização dos conteúdos psíquicos promovida pela análise. A preparação da sala, reconstruindo o cenário fiel aos detalhes, onde ocorreu o último encontro, também abandonada, mas prenhe, viva de recordações, aponta para a necessidade de recordar, repetir e elaborar os acontecimentos, de modo a se conseguir a edificação de novos paradigmas. E por fim, a narrativa de Henrik. Nela, fica clara a sua necessidade de falar, de ser ouvido. As duas perguntas que dirige a Konrád não esperam, de fato, respostas, pois ele já as tem. Na realidade, não importam mais, porque entende, sabe, que tudo passa, tudo fenece, assim como a vida. Henrik, finalmente, chega à verdade, e assim encontra a tranquilidade.
*MÁRAI, Sándor. As velas ardem até ao fim. Tradução de Mária Magdolna Demeter. 23ª ed. Alfragide: D. Quixote, 2011.