Poderia ser, talvez, um feriado. Mas, mesmo nos feriados, havia sempre quem se aventurasse sair. Era mais que isso. Uma paralisação geral? Não ouvira qualquer convocação. Impossível não saber. O celular! Se as pessoas não estavam nas ruas, estavam com certeza no seu celular. Não é nele onde todo mundo se encontrava? Estava ali a hora, pelas oito da manhã. Mas, sem mensagens. Ninguém online. Que espantoso. As pessoas estão sempre disputando aparecer nas mídias digitais. Mas, afinal, onde estão todos?
Ele escolhe um número quase aleatório e liga. Aila não atende. Nem Samia. Muito menos Sila. Nem seu irmão Kerdesi, que vive pendurado no celular, atende. Tenta a namorada Kiz. Também não. Bem, conclui que deve estar havendo um blecaute nas comunicações, talvez as tais manchas solares. Decide tentar mais tarde.
O sinal está verde. Aliás, parece nunca ter sido vermelho, a julgar pelo tempo que estava aberto, enquanto Cilgin olhava seu celular. E permaneceu verde. Ele vai, segue pelas ruas assombrosamente vazias. Aproveita para apressar o carro. Um prodígio que só poderia experimentar no trajeto de ida ao trabalho num dia assim, sem trânsito algum. Um domingo, certamente. E quando olha para o celular, ele vê que o aparelho insiste: é uma segunda-feira. E sabe que não adianta contestar o aparelho. Ele está sempre certo. Aliás, a impressão para Cilgin é que só ele está errado, num mundo tão insistentemente certo.
Encontra estacionamento fácil demais. Nunca ocorreu antes. Que maravilha, afinal, uma segunda-feira assim tão domingo. O elevador chegou tão rapidamente, que Cilgin quase tomou um susto. No escritório, o vazio era o mesmo. Ninguém estava trabalhando. Volta a tentar o celular. Liga para várias pessoas e ninguém atende. Talvez, nesse momento, tenha ocorrido, pela primeira vez, que estava só no mundo. Mas, esse era um pensamento tão racionalmente absurdo, que abandonou. Teria de haver outra explicação.
Decide tentar pelo computador. A tela acende azulada, mostra a imagem de uma praia bordada de rochedos. Parece uma foto fabricada. Andam alterando cenários do mundo com os computadores. Coisas que de tão artificiais, até parecem naturais. Aciona a Internet. Comemora. Está ali. Está conectado. Então, era uma ideia tola, afinal. Vai nas redes sociais. Elas estão exatamente como ele havia deixado na noite anterior. Sem novas postagens, contudo. Envia mensagens e aguarda, ansiosamente, pelas respostas. Que não vêm. Passa o tempo, tenta novamente, ninguém responde.
* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.
"Vê-se que a culpa é um forte componente da sua narrativa. A imagem onírica do sapo estuprado pelo porco antecipa o que se evidenciará, linhas depois, na cena do menino sendo violentado pelo adulto (meta-foricamente um “porco”, vocábulo a que se associam imundície e abjeção). A esse animal indiretamente se vincula a figura do pai, que permaneceu omisso e silencioso ante o sofrimento do menino." (Chico Viana)
"Vê-se que a culpa é um forte componente da sua narrativa. A imagem onírica do sapo estuprado pelo porco antecipa o que se evidenciará, linhas depois, na cena do menino sendo violentado pelo adulto (meta-foricamente um “porco”, vocábulo a que se associam imundície e abjeção). A esse animal indiretamente se vincula a figura do pai, que permaneceu omisso e silencioso ante o sofrimento do menino." (Chico Viana)