Para a cura de doenças, principalmente das partes pudendas, deve-se aplicar “o sumo de consólida, milagrosa e já referida planta que dá para tudo e não cura nada”. É o que diz Saramago, em Memorial do Convento, referindo-se aos fitoterápicos aplicados aos pobres, mas sem qualquer eficácia. Não vejo definição melhor para a democracia no Brasil. A democracia ainda não morreu, mas se encaminha ladeira abaixo para a hora final,
sem que se lhe dê a extrema-unção. Enquanto não morre, torna-se, dia a dia, uma farsa, uma ópera bufa, com direito a bufões, cheios de bazófia, dizendo parvoíces, para que a claque, paga com o dinheiro público os aplauda. Se esses bufões forem para as ruas, serão execrados e, em lugar de ovados, serão recebidos a ovos. Deles, nem se pode dizer que sejam, como formulou o poeta, galeotas empavesadas, mas que navegam “por mares de soberba desatada”, isso ninguém pode negar.
Sustentando-se em bufonarias e truanices, sem que o bufão suba ao nível crítico e inteligente de um D. Bibas, personagem imortal de Alexandre Herculano, em O Bobo, na corte da rainha D. Tareja, que se mantém no trono por tê-lo usurpado ao filho, D. Afonso Henriques. Sim, falta-nos um D. Afonso Henriques, para fundar de vez a pátria e a nacionalidade. Mas Brasília nunca será Guimarães.
Democracia, atualmente, é termo que ou serve de panaceia, vinda do sumo da consólida, sem curar os males que nos assolam, por serem tantos, ou é néctar inebriante, poção, fármacon (φάρμακον) paralisante, que, fiel à sua raiz grega, tanto pode servir de remédio, como de veneno. A diferença está na dose ou na mezinha prescrita errada. Democracia tornou-se, pois, termo banal, oco, sem sentido, porque jamais as palavras correspondem aos atos, dando ânsias de lançar, quando a vemos saindo de bocas que descaradamente a profanam.
Convenhamos que a democracia, sendo um estado ideal a ser atingido e aperfeiçoado, ela se mostra sempre imperfeita. A diferença é que a nossa inexiste e durante anos de Estado Republicano sempre cedeu aos assédios autoritários ou corruptos, às vezes dos dois, porque um reclama o outro.
Se não podemos tomar a democracia grega como modelo, devemos reconhecer que ela nos forneceu o fundamento, as bases. A francesa também não deve ser modelo, apesar de uma consistência mais sólida, de 1945 para cá. A revolução de 1789 logo se converteu em perseguição e violência desmedidas, preparando regimes autoritários e a volta da monarquia. Nenhuma república se instaura, efetivamente, se não há uma consistência democrática. O exemplo de 1789 é eloquente, sobretudo se olharmos para 1793. O que vem depois – 1799, 1804, 1815, 1830, 1832, 1848, 1851, 1871, 1940 – é história.
A democracia americana, ainda que não seja perfeita – para sê-lo, uma democracia teria que atuar dentro e fora de seus limites geográficos –, mas é o que de melhor existe no mundo, por ser duradoura e resistir a tentações autoritárias. O que a mantém é uma Constituição sólida, com poucos artigos e algumas emendas, garantindo sobretudo o direito da livre expressão, cujas palavras iniciais – “We, the people” – dizem tudo. Sem livre expressão nenhuma democracia funciona. Quando o namoro com a censura começa, a democracia rui. Não se pode conceber democracia com censura prévia, com juízes ou ministros ou quem quer que se arvore em autoridade dizendo o que pode ser dito e o que não pode. Não existe autoridade em uma democracia que possa subscrever a censura. Se existir, já não é democracia.
O direito à liberdade de expressão e de se dizer o que quiser deve ser garantido. Quem não gostar ou se sentir ofendido deve ir à justiça, pois o direito de recorrer à infâmia ou à difamação está garantido na lei. Se uma nação, por conveniências obscuras age diferente, concedendo a juízes o direito arbitrário de calar alguém, esta nação não é democrática, está mais próxima de um sistema inquisitorial do que de um sistema democrático, que o diga o Padre Vieira.
Entre bufões reais e fictícios, fico com o personagem de Herculano, D. Bibas, cujas ações fingidas como bobo da corte ajudaram, pela astúcia e inteligência, a impedir o avanço autoritário do D. Fernão Peres de Trava, na manipulação do fraco caráter da rainha D. Tareja, que este colocara no poder. A literatura sempre nos aponta um caminho.