Acendem-se, amanhã, as últimas fogueiras juninas, as de São Pedro. Mais do que em outras partes do Brasil elas iluminarão os terreiros do Nordeste. Pelo costume, já se sabe que não serão tantas nem tão grandes quanto as do dia 24, consagrado a São João. Ou seja, aquele que Jesus tomou como alicerce de pedra para sua Igreja não desfruta do mesmo prestígio nos arraiais do País. Nestes, São João tornou-se maior, fez-se o epicentro de folguedos iniciados no último dia 13, timidamente, com Santo Antonio, o casamenteiro.
Por falar nele, não deixo de me compadecer do primeiro santo do mês em curso. Por aqui, tão folclórico quanto as danças e brincadeiras da temporada, o coitado tem sido posto de ponta-cabeça nos oratórios domésticos até que atenda os pedidos de matrimônio das caçadoras de marido. Consta, porém, que Antonio, em suas andanças na Terra, era um homem bom e culto. Não merecia a desfeita. Gregório IX o convidou para pregações no Vaticano. Em 1946, foi proclamado Doutor da Igreja. Vindo ao mundo no Século 13, ele paga, certa e penosamente, em meio à gente simples, o preço de não ter andado com Cristo.
O Pedro que me ocorre neste apagar das fogueiras vai além das crendices populares que ora o têm como fazedor de chuvas, ora como chaveiro do Céu, um santo com autoridade suficiente para abrir, ou fechar portas. É certo que também alimenta o folclore e compõe as histórias contadas, antigamente, por avós carinhosas para o encantamento dos netos.
Uma delas: São Pedro entreabriu a porta celestial a fim de identificar quem por ele chamava. Defronte a si estava um condenado ao Purgatório. Ao ser lembrado disso, o sujeito enfiou uma perna naquela brecha para evitar que o acesso ao sagrado recinto lhe fosse de pronto negado. O santo imprensou o penetra, ouviu seu grito e, apiedado, afrouxou o aperto. Então, uma banda daquela alma penada ingressou no Paraíso. Apertou novamente, ouviu outro “ai”, voltou a afrouxar e, ao cabo de apertos e gemidos, o Céu ganhou um novo morador. Piedade em demasia dá nisso.
O garoto que eu fui teve medo de chuva grossa e trovão só até o momento em que ouviu a explicação da avó Amélia: “São Pedro, além de porteiro, também é zelador do Céu. A chuva advém do despejo da água por ele usada na lavagem do piso”. Mas isso não explicava tudo: “E o trovão?”. Resposta: “É o barulho dos móveis que ele arrasta”. Que menino, depois de ouvir isso, voltaria a ter medo dessas coisas?
Observemos que as brincadeiras com Pedro são diferentes daquelas com Antonio. Ninguém deprecia o último santo de junho, nem o vira de cabeça para baixo. Quando assim ficou foi por vontade própria. Quis ter a cabeça onde o Mestre teve os pés na cruz do suplício. Ele, em resumo, foi o apóstolo mais próximo de Cristo, o mais querido e mais confiável, apesar de algumas relutâncias e das três mentiras que disse antes do cantar do galo.
O que agora me interessa, repito, é Pedro, em sua humanidade. O mentiroso, porquanto temente dos castigos de Roma, a Casa Grande daqueles tempos. “Você conhece o homem?”, perguntou-lhe a polícia de Herodes para dele obter a terceira negação. A primeira foi quando a criada do sumo sacerdote o identificou como cristão. Depois da última, o galo inflou o peito, bateu as asas e soltou a voz nas redondezas, a fim de lembrá-lo da predição que ouvira, horas antes, durante a Santa Ceia.
O que me importa é o Pedro arrependido e valente, apesar dos seus medos. Aquele que empunhou a espada para decepar a orelha de Malco, o soldado que, aliás, a teve reemendada por Jesus, sem linha nem costura, ali mesmo, no Jardim do Getsemâni. Não é preciso dizer que o milagre, publicamente operado, não livraria da cruz o mais justo dos homens.
Vá ver, os soldados também padeciam dos receios de Pedro. Acho que o próprio Jesus bem sabia disso. Tanto que repreendeu o amigo: “Ponha a espada de volta à bainha. Acaso não beberei o cálice que o Pai me deu?”. Todas as Romas, as de ontem e a de hoje, aterrorizam santos e devotos, meus amigos. Roma é fogo.
Tudo bem, aceito que alguém não acredite no que eu agora conto. Mas não perdoarei os que duvidarem dessa mesma história dita por João, Lucas, Marcos e Mateus, não sei se nessa ordem, pois não visito a Bíblia com os olhos e sentidos muito além da curiosidade. De todo modo, conto o conto, mas não aumento um ponto, ao contrário do que reza o dito popular.
Ah, como gosto daquele Pedro pescador tanto de peixes quanto de almas. Dizem que foi apresentado ao Mestre por João. Depois disso, dispôs o barco, à guisa de palanque, para a multidão que se formara à beira d'água dali ouvir o sermão de Cristo, do homem brilhante que falava de liberdade, fidelidade, resistência e vida eterna. E que lucro teve aquele Pedro! O dia de pesca ruim terminaria recompensado com peixes em volume grande ao ponto de rasgar as redes.
Atrai-me o pescador que também tinha medo das tempestades, o discípulo para quem Jesus gritou: “Homem de pouca fé”. Adoro o Pedro que afundou pelo pescoço quando tentou andar sobre as águas, a exemplo do seu líder. O ser de carne e osso como eu e você, ora seguro ora inseguro. A Igreja – assim entendidos os aglomerados humanos ainda em busca do conforto, da paz e da felicidade – não poderia estar em melhores mãos.
Por mim, o 29 de junho teria a maior das fogueiras. E teria encantos faltosos aos arraiais feitos, nacionalmente, de muita comida, muita bebida e muita dança. Há os inacessíveis ao povaréu por terem o preço pela hora da morte. A propósito, dizem que certos cachês cometem, dentro e fora de junho, em recantos diversos, o milagre da limpeza de dinheiro sujo. Mas essa é uma história que não confirmo. A exemplo de Pedro, sou besta não.