Muitos anos atrás, quando eu havia iniciado o curso médico, meu pai trouxe para casa com um novo livro. Ele gostava muito de ler, especialmente literatura policial e de mistério, e sempre chegava com algum livro interessante. Mas desta vez esse livro superou a minha expectativa, pois significou um marco na minha futura vida profissional.
Tratava-se do conto policial “Um Estudo em Vermelho.” Essa obra foi o primeiro livro escrito por Sir Arthur Connan Doyle, dando vida ao personagem Sherlock Holmes.
MS
O livro é ótimo, e acho que ele deveria ser lido por todo estudante de Medicina. E digo por quê: em sua primeira aventura Holmes consegue desvendar um misterioso caso de assassinato baseando-se em evidencias médicas. E o que mais me fascinou foi que ele seguiu princípios médicos do raciocínio clínico. Pois o conto Um Estudo em Vermelho é, na realidade, uma aula de semiologia.
Elementar, meu caro Watson!
Rembrandt
Passado o impacto inicial, eis que finalmente seríamos introduzidos ao curso médico pra valer. Aprofundamos-nos progressivamente na Medicina, a mente se transformando até tornar-se em pensamento profissional.
Começamos por semiologia, anatomia e técnica cirúrgica. Depois viriam as outras disciplinas que fariam nos sentirmos cada vez mais como médicos, com a euforia e orgulho de estudar Medicina.
Concluímos o curso certos de que éramos mais do que médicos: éramos, na nossa realidade, semideuses! E com esse pensamento arrogante fomos despejados no mundo. Lêdo engano! O tempo se encarregaria de nos trazer de volta à realidade, muitas vezes de forma cruel.
Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson
Mas a Medicina não pára. Ao longo de todos esses anos a ciência médica evoluiu muito, talvez mais que as demais ciências. Assim surgiram exames de alta tecnologia. A ciência presenteou as novas gerações dos médicos que examinam o paciente por fora com exames cada vez mais sofisticados, enxergando o paciente por dentro.
MS
Como as doenças não param, um método de atendimento médico à distância foi largamente introduzido e utilizado: a tele-consulta. A tele-medicina foi então aprimorada para atender parcialmente às necessidades dos pacientes.
Parcialmente, pois não contém um recurso indispensável na quase totalidade das especialidades médicas: o contato humano!
Como ter um diagnóstico seguro, firme, sem examinar o paciente? A semiologia também fica bastante prejudicada, dependendo apenas da informação do mesmo, que quase sempre é carregada de subjetividade.
Luke Fildes
Vou mais adiante: ver e sentir o paciente! Pois, para mim, a consulta, o exame físico, começa pelo “boa tarde” quando o paciente chega à porta do consultório: a forma como responde, o jeito como caminha, como entra, como se senta, tudo isso é observado pelo médico na introdução à consulta. É o início da semiologia. Depois vem o exame físico. Quando um paciente adentra o consultório médico, geralmente se encontra em condições de inferioridade, tem algum grau de sofrimento. Portanto, ele entra tenso, armado. Cabe ao médico desarmá-lo, deixá-lo à vontade, senão a anamnese, a semiologia, serão prejudicadas.
Jan Steen
Começar batendo um papo sobre a saúde dele, a anamnese de uma forma inteligível e aceitável , é um bom começo. Pouco a pouco ele irá se abrindo, o que facilitará o trabalho do médico. Só então é chegado o momento do exame físico. Depois é que irá analisar os exames já disponíveis.
Jan Steen
Claro que isso demanda tempo, quando da primeira consulta. Cabe ao médico saber administrar o tempo. Assim ele conseguirá manter uma relação médico-paciente bem equilibrada. O paciente sairá muito satisfeito, deixando o médico com a agradável sensação de ter feito o bem.
Isso jamais se obtém com o atendimento à distância. Tele-consulta é, para mim, como jogar xadrez pela internet: não tem gosto!
Para concluir conto uma historinha que ouvi muitos anos atrás, que ilustra muito bem como é difícil a relação médico-paciente.
Um certo dia Jesus viu lá de cima o trabalho de um médico num ambulatório do velho INAMPS. E ficou apiedado com o estado de exaustão em que ele se encontrava.
Jacques-Louis David
O paciente entrou, e mal havia se sentado quando Jesus lhe interrompeu a fala, dizendo:
“Vá para casa tomar este remédio, que será curado!” E deu-lhe uma receita. O homem saiu desanimado, e lá fora outro paciente perguntou como era o novo médico. Respondeu:
“Igual aos outros: mal olhou pra mim e foi logo dando uma receita. Num tirou nem a minha pressão!”
Brincadeiras à parte, o médico tem formação suficiente para evitar situações como essa descrita acima. Basta ser humano. Muitos pacientes não têm doenças, e procuram o médico só para se comunicar com alguém, ser ouvido. Seguindo a sua consciência, com o tempo ele deixará de atender apenas por dever de ofício, para sustentar a família.
E descobrirá o prazer de atender!