Há exatos duzentos anos, ocorreu em algumas Províncias do Nordeste brasileiro uma insurreição contra o governo imperial que ficou conh...

O Poeta da Confederação do Equador

confederacao equador natividade saldanha
Há exatos duzentos anos, ocorreu em algumas Províncias do Nordeste brasileiro uma insurreição contra o governo imperial que ficou conhecida como a Confederação do Equador. Para Tobias Monteiro, que abordou detidamente a revolta na sua História do Império, “além de Pernambuco, a Paraíba e o Ceará foram os únicos focos importantes da reação”.

Apesar dessa insuspeita opinião de um respeitado historiador nascido no Rio Grande do Norte, a Paraíba não dá a devida importância a sua participação no movimento revolucionário de 1824, que Horácio de Almeida,
confederacao equador natividade saldanha
um dos principais historiadores do Estado, classificou como temerário (existiriam revoluções não temerárias?). Mas, os fatos comprovam o protagonismo da Paraíba naquele ano. Em maio de 1824, na antiga Vila Real do Brejo de Areia, foi eleito pelos rebelados paraibanos um Presidente para a Província que de lá saiu à frente de tropas para depor o Presidente que havia sido nomeado pelo Imperador Pedro I. Em Itabaiana, aconteceu a principal batalha da revolta de 1824 que envolveu cerca de 3.500 combatentes. E quando a revolta foi debelada no Recife e os revoltosos (entre eles Frei Caneca) decidiram continuar a luta e rumaram para o Ceará estavam sob o comando do Presidente da Paraíba que os insurgentes paraibanos haviam escolhido.

Quando se fala na Confederação do Equador uma figura, com justíssimas razões, sempre é lembrada, tanto pelo seu valor intelectual como pela tragicidade da sua morte, a do frade carmelita Joaquim do Amor Divino Rabelo, apelidado Frei Caneca. Mas, outros personagens importantes na revolta não merecem ser esquecidos, como o jornalista português João Soares Lisboa e o cearense Tristão de Alencar Araripe, ambos mortos em combate, Félix Antônio Ferreira de Albuquerque,
confederacao equador natividade saldanha
Fonte: Biblioteca Luso-brasileira
o Presidente da Província da Paraíba eleito pelos revoltosos paraibanos, e o advogado e poeta pernambucano Natividade Saldanha.

José da Natividade Saldanha nasceu, em 1796, no atual município de Jaboatão dos Guararapes. João Cabral de Melo Neto, no seu poema “Um poeta pernambucano”, o descreve como “filho de padre e mulato quase negro” porque Natividade Saldanha era filho do vigário de Serinhaém com uma negra, um tipo de relacionamento que não era incomum numa época em que muitos clérigos constituíam prole com as suas “comadres”. Para ficarmos apenas nos contemporâneos de Saldanha em Pernambuco, pode-se citar os casos notórios de Abreu e Lima, que era filho do padre Roma, e do próprio ícone da Confederação do Equador, Frei Caneca, que era pai de três filhas. Embora não tivesse sofrido discriminações por ser “filho de padre”, Natividade Saldanha, ao contrário, passaria durante a sua vida, por conta da sua cor, por várias situações preconceituosas.

confederacao equador natividade saldanha
Províncias do Nordeste do Brasil no início do século XIX ▪ AH Brue, 1826, via David Rumsey Collection
Em um soneto ingênuo, Natividade Saldanha descreveu os seus primeiros anos: “Soube aos cinco anos fazer qualquer leitura, / E aos dez anos a música aprendia / Aos doze uma rebeca eu já tangia, / E mil versos compunha com doçura; / Aos quinze do latim tomei tintura, / E aos dezoito estudei Filosofia”. A formação de Saldanha se deu em um ambiente impregnado pelo pensamento iluminista que se propagava a partir do Seminário de Olinda onde ele estudou e que, segundo o bispo D. Duarte Leopoldo, “era um ninho de ideias liberais e subversivas”. Para o escritor Vamireh Chacon, “foi nesse clima que Natividade Saldanha se iniciou intelectualmente na política tanto quanto nas musas.
confederacao equador natividade saldanha
Coimbra, no século XIX. Taylor, 1886
Daí não ser de admirar seu engajamento, aos vinte anos, na Revolução de 1817”
.

Com o fracasso da insurreição de 1817, Natividade Saldanha, um dos “patriotas”, como se autodenominavam os revoltosos, passou dias escondido, fugindo da brutal repressão aos rebelados que se instalou em Pernambuco. Depois, com a ajuda do pai conseguiu embarcar para Portugal onde ingressou no curso de Direito da Universidade de Coimbra. No seu registro de matrícula na Universidade consta a sua filiação como sendo de “pais desconhecidos”.

Natividade Saldanha teve uma passagem brilhante pela Universidade de Coimbra, mas estudante de poucos recursos optava por converter em dinheiro os prêmios acadêmicos que conquistava (o que era possível na época). No terceiro ano do bacharelado Saldanha escreveu um livro de poesias que foi publicado, em 1822, pela editora da Universidade: “Poemas oferecidos aos amantes do Brazil”. Em 1949, depois de mais de um século da sua publicação, a obra despertava a atenção do jovem poeta João Cabral
confederacao equador natividade saldanha
que em uma carta a Manuel Bandeira, perguntava: "⏤ Conhece v. a obra de Natividade Saldanha? Estou com vontade de desenterrá-lo. Não é genial um sujeito que fez antes de 1824 uma ode anacreôntica sobre o 'ponche de caju'?"

Três décadas depois, já poeta consagrado, João Cabral de Melo Neto “desenterrava” Natividade Saldanha em seu livro Escola de Facas (Editora José Olympio, 1980) ao se referir no poema “Um poeta pernambucano” às odes anacreônticas “o galo de campina” e “o ponche de caju” que faziam parte do livro que Saldanha publicou em 1822:

“foi quem primeiro mostrou que um poema se podia sobre o ponche de caju, sobre o galo de campina.”

Em 1823, Natividade Saldanha estava de volta a Pernambuco. Doutor em leis e um dos “patriotas” de 1817, Saldanha foi logo escolhido como Secretário do governo da Província em uma eleição decorrente da renúncia de uma junta que então governava Pernambuco. Por essa mesma época, o Imperador Pedro I dissolveu a primeira Assembleia Constituinte do país e nomeou para Pernambuco um Presidente que não agradou a uma grande parcela dos pernambucanos e foi impedido de tomar posse. Para forçar o cumprimento do ato imperial o governo bloqueou, sem obter sucesso, o porto do Recife por três meses. Esses fatos criaram um ambiente convulsionado em Pernambuco.

confederacao equador natividade saldanha
Porto do Recife, no início do século XIX. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional (ad.)
Após o golpe da dissolução da Constituinte, o Imperador constituiu um reduzido grupo que, em poucos dias, elaborou uma Constituição cujo texto foi enviado para juramento pelas Câmaras das Províncias. Natividade Saldanha, em seus escritos como redator de um jornal e nas proclamações que eram feitas pelo governo da Província, advertia e esclarecia a população que aquela Constituição não deveria ser jurada, pois não fora elaborada pelos constituintes que haviam sido eleitos com o fim específico de fazer a lei maior do país.

“Decreta-se que juremos [...] e nos forçam a jurar com bloqueios e assoladora fome. Desde quando tais juramentos são válidos e obrigatórios? [...] fizeram-nos jurar que só a Nação é competente para estatuir a sua Constituição por meio de seus representantes para isso devidamente eleitos e reunidos;
confederacao equador natividade saldanha
e agora juram e nos prescrevem jurar uma Constituição em que não tivemos alguma parte feita e apresentada [...]

“Concluindo, eu vos declaro que, em minha consciência, a liberdade e a honra da Pátria nos mandam rejeitar esse projeto pérfido [...] aceita-lo é consentir, é sancionar a volta do Brasil à união tal ou qual com Portugal [...] é reconhecer a nossa incapacidade para nos constituirmos pelo modo competente, isto é, por meio dos nossos Deputados eleitos para isto e reunidos em Assembleia Geral.”

A situação conflituosa na região chegou a tal ponto que, em julho de 1824, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, o Presidente de Pernambuco que fora eleito juntamente com Natividade Saldanha e que se colocara em contraposição aos atos despóticos do Imperador, fez uma proclamação (que teria sido escrita por Saldanha) na qual conclamava as Províncias a se congregarem em uma Assembleia Geral Constituinte para elaborarem o “Código Fundamental Federativo, à maneira dos Estados livres do Norte e Sul da América”. A reação do governo imperial não tardou e uma força militar enviada do Rio de Janeiro consorciada a contrarrevolucionários locais conseguiu debelar a revolta no Recife.

confederacao equador natividade saldanha
O exército imperial ataca as forças confederadas no RecifeL. Martins, 1820s, via Wikimedia
João Cabral prossegue na sua homenagem ao poeta da Confederação do Equador:

“Pernambucano apressado, léguas à frente do então, foi-se antes de que o império, lhe desse decoração. Republicano que ele era, ministro de Vinte-e-quatro, que grau na Ordem lhe daria? Certo o colar de enforcado”

A partir daí, começaria a jornada mais atribulada da vida de José da Natividade Saldanha. Ao tentar fugir, a jangada que o transportava não conseguiu alcançar um navio francês que navegava ao largo da costa de Olinda e ele teve que retornar e passar dias escondido na cabana de um pescador até conseguir embarcar em um veleiro norte-americano. E, assim, o poeta se despediu do Brasil para nunca mais voltar:

“Segunda vez te deixo, ó pátria amada !... Lutando braço a braço com a desgraça Um momento que foge, outro que passa Agrava mais tua sorte amargurada.”
confederacao equador natividade saldanha
No mesmo dia da sua chegada aos Estados Unidos, na Filadélfia, começariam para Saldanha vários infortúnios. Em um relato do seu amigo e biógrafo Antônio Joaquim de Mello:

“Em uma hospedaria posto a jantar em mesa-redonda com outros brasileiros e alguns americanos, estes levantaram-se e requereram ao dono da casa que fizesse retirar dali aquele homem de cor preta”

Em Nova York, Natividade Saldanha encontraria novas desventuras por causa da sua cor, tendo sido rejeitado em hospedarias e forçado a ocupar nos teatros lugares inferiores destinados aos negros. Decidiu, então, ir para a França. Com a recusa do governo brasileiro em lhe conceder o passaporte conseguiu a licença para viajar com o Cônsul de Portugal.

confederacao equador natividade saldanha
Na França, Saldanha também não encontraria sossego. Ao tomar conhecimento da chegada em Paris de um dos líderes da Confederação do Equador o encarregado dos negócios do Brasil comunicava ao governo imperial:

“Dos Estados Unidos com passaporte português chegou do Havre um tal Natividade Saldanha, que me dizem negro secretário do negro governo de Carvalho; dei imediatamente os passos necessários em tal caso... há de arrepender-se de ter aqui vindo”

Não demoraria para que a polícia francesa passasse a seguir os passos de Saldanha que era considerado em um relatório policial um dos integrantes “mais ativos do Governo revolucionário organizado nas províncias setentrionais do Brasil”. Na sequência, o poeta foi submetido a interrogatórios, seus papeis (contendo vários poemas) foram apreendidos e, por fim, ocorreu a sua expulsão da França.

A Grã-Bretanha é o seu novo destino e outros percalços se sucedem. Um naufrágio numa tormentosa travessia do canal da Mancha, o trabalho duro nas docas de Liverpool para tentar sobreviver e uma hospitalização em Londres. Natividade Saldanha decidiu,
confederacao equador natividade saldanha
então, voltar para a América e os feitos de Simón Bolívar o encaminharam para a então chamada Grã-Colômbia, onde já estava em posição de destaque nas tropas do Libertador o seu conterrâneo Abreu e Lima. Em Caracas, Natividade Saldanha tomou conhecimento da sua condenação pela participação na Confederação e que determinava que ele fosse preso e “levado das cadeias que estiver ao lugar da forca”. Saldanha resolveu, então, de forma irônica, enviar para o juiz que assinou a sua sentença uma procuração nos seguintes termos:

“José da Natividade Saldanha, bacharel em direito civil pela Universidade de Coimbra [...] por esta bastante procuração por mim feita e assinada constituo meu bastante procurador na província de Pernambuco a meu colega o Ilmo. Thomaz Xavier de Almeida, para que em meu lugar, como si eu próprio fora, possa morrer enforcado e sofrer qualquer castigo [...] pois para tanto lhe concedo os amplos poderes que o direito me permite”

Em Caracas, Natividade Saldanha teve um período de relativa tranquilidade em que trabalhou como advogado, mas um episódio o levou a uma nova situação embaraçosa. Ao assumir a causa de um casal de estrangeiros que pretendia
confederacao equador natividade saldanha
___
se separar judicialmente, Saldanha publicou um panfleto no qual defendia a dissolubilidade do matrimônio tanto pelo Direito Civil como pelo Direito Canônico. Foi o bastante para cair sobre ele a ira da Igreja que conseguiu que ele fosse proibido de exercer a advocacia no país.

Natividade Saldanha se mudou para Bogotá, onde passou a sobreviver dando aulas de Literatura e Latim. Passou a escrever poemas com o pseudônimo de “Josino Pernambucano” e a saudade do Brasil fez com ele começasse a abusar do álcool. Em uma noite chuvosa, ao voltar de uma aula, teria escorregado e caído em um pequeno córrego. O poeta da Confederação do Equador morreu aos 36 anos de idade. João Cabral de Melo Neto assim encerrou o seu poema “Um poeta pernambucano”:

“Anos passam: só o álcool traz-lhe o alísio do Recife, os muxarabis de Olinda, crer em Bolívar, sentir-se Numa noite em Bogotá, de temporal terremoto, vindo de um latim que dava, foi-se no enxurro de um esgoto”
confederacao equador natividade saldanha
Bogotá, no século XIX ▪ Fonte: Montaner y Simón Ed., via Wikimedia
Em uma Elegia dedicada aos seus “amigos comprometidos na Revolução de 1824”, José da Natividade Saldanha, o Poeta da Confederação do Equador, escreveu:

“[...] Tudo é sujeito à força dos destinos; Nada foge ao que o fado duro ou brando Tem escrito nos livros sibilinos [...] O bravo Casumbá, o valoroso Agostinho, de Dias descendente, Carapeba nos feito tão famoso O Caneca erudito e eloquente O fiel Wenceslau que não cedia No brio e no valor a grega gente [...] Amigos, que vivestes já comigo, Recebei minha dor, meus ais, meu pranto. Oh! feliz, se abraçar-vos eu consigo! E vós, que hoje escutais meu triste canto, Tomai parte na dor que me consterna. E o eco nos escute, e soe tanto, Que inda a sua memória seja eterna.”


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Mais um belo texto, Flávio. Parabéns por mais essa contribuição à nossa História.

    ResponderExcluir
  2. Grande texto, revelador de seu talento, historiador.

    ResponderExcluir

leia também