Em junho de 1951, o escritor paraibano José Lins do Rego completava 50 anos de idade com a sua obra ficcional praticamente concluída. De 1932, quando lançou o Menino de Engenho, até 1947, ele já havia publicado 11 dos 12 romances que escreveu, entre eles Fogo Morto, que é considerado a sua principal produção literária. No Rio de Janeiro, as comemorações do aniversário do escritor foram adiadas porque José Lins
se encontrava na Europa como dirigente do Flamengo acompanhando o time em uma excursão pelo continente europeu. Na Paraíba, também se cogitava homenagear o ilustre filho do Estado, mas adiamentos por conta da agenda de José Lins levaram as festividades do cinquentenário do romancista para o ano seguinte.
No início de 1952, o nome de José Lins do Rego aparecia nos principais jornais do país, não nos locais onde comumente se destacava — nas seções de literatura ou esporte — mas nas colunas políticas. Comentava-se que o escritor seria indicado (ao que se contava, por sugestão de José Américo de Almeida) para ocupar a suplência de Assis Chateaubriand numa eleição para uma vaga da Paraíba no Senado e que estava marcada para o início de março. Mas, como ocorre até os dias de hoje, existem outros critérios que não são os do merecimento para a definição dos suplentes de senador e a escolha de José Lins acabou não acontecendo... O escritor Marques Rebelo tratou o assunto no jornal Ultima Hora em um artigo com o título “Pifaram o Zé Lins”:
“E quando os partidos políticos começaram a tormentosa tarefa de escolher os nomes dos candidatos, um cidadão certamente letrado lembrou a figura do grande romancista José Lins do Rego [...] Naturalmente que os amigos do escritor mostram-se satisfeitos. Seria uma oportunidade para ir ao Senado. E gozavam já antecipadamente o vozeirão do famoso torcedor do Flamengo defendendo as necessidades da Paraíba, que são também as necessidades do Brasil.
Mas tudo não passou de conversa e noticiário jornalístico. Após os definitivos entendimentos políticos, ficou estabelecida a escolha do sr. Drault Ernani [...] e se ele foi escolhido para substituir um José Lins do Rego, certamente é valor muito mais eminente, honradez muito mais comprovada e talento muito mais esclarecido. Talvez que depois da sua eleição a Paraíba não seja mais pequenina. Precisa-se, portanto, já ir pensando em mudar a letra do baião.”
Mas tudo não passou de conversa e noticiário jornalístico. Após os definitivos entendimentos políticos, ficou estabelecida a escolha do sr. Drault Ernani [...] e se ele foi escolhido para substituir um José Lins do Rego, certamente é valor muito mais eminente, honradez muito mais comprovada e talento muito mais esclarecido. Talvez que depois da sua eleição a Paraíba não seja mais pequenina. Precisa-se, portanto, já ir pensando em mudar a letra do baião.”
Afastado o ingresso de José Lins na política, começaram a ser tomadas na Paraíba as providências com relação às homenagens referentes ao cinquentenário do escritor que deveriam ter acontecido no ano anterior. O governador do Estado José Américo de Almeida destinou verba específica para a finalidade e designou comissão para organização das festividades que teriam como ponto principal uma solenidade em Pilar. Nascido e criado no município, no engenho Corredor, Pilar foi a primeira cidade que o menino futuro romancista conheceu e cujas lembranças ele deixou registradas em livro de memórias:
“As terras do Corredor espalhavam-se em várzeas e subiam para as caatingas e os tabuleiros [...] Os partidos de cana chegavam quase às ruas do Pilar. A vila tinha quintais em terras do meu avô [...] Já via o Pilar como outra entidade que não o engenho. Lá estava o sobrado do comendador todo rodeado de rótulas e vidro de cor. A igreja, o padre Severino, a noite de festa. A Câmara Municipal onde o meu avô me levava para ver o júri. Havia mais alguma coisa que o Corredor.”
A programação festiva a ser realizada em Pilar estabelecia que, após uma missa solene de ação de graças, seria colocado um busto do escritor na principal praça da cidade. O busto em bronze de José Lins já chegaria à Paraíba laureado. A peça, que fora esculpida por Bruno Giorgi (que depois viria a fazer a escultura Os Candangos um dos símbolos de Brasília), e que tinha o nome de “Retrato de José Lins do Rego” obtivera, em novembro de 1951, o primeiro prêmio no Salão Paulista de Arte Moderna.Meus verdes anos ▪ Editora José Olympio
No sábado 17 de fevereiro de 1952, José Lins chegava à Paraíba acompanhado de uma comitiva para participar das festividades. Em voo especial da FAB, vieram vários amigos do escritor. Apesar das ausências de Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, cujas presenças haviam sido anunciadas, o grupo não era inexpressivo: os cronistas Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, os jornalistas Lúcio Rangel e Hildon Rocha, os críticos literários Valdemar Cavalcanti e Sérgio Milliet, o escritor Marques Rebelo, o artista paraibano Tomás Santa Rosa (que fizera as capas e ilustrara os livros de José Lins), o crítico de arte Mário Pedrosa (filho do antigo senador pela Paraíba Pedro da Cunha Pedrosa), Millôr Fernandes (ainda conhecido como o Emmanuel Vão Gogo das páginas da revista O Cruzeiro), Simeão Leal (representando o Ministro da Educação), entre outros.
O discurso de agradecimento de José Lins do Rego, evocando um dos seus principais personagens, foi o destaque da solenidade em Pilar:
“Meus amigos, se por aqui, por este velho e amado Pilar, aparecesse o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o intrépido e valoroso Papa Rabo, e visse este povo, com o governador à frente, em torno de um pedaço de bronze, perguntaria na certa,
com a desenvoltura que Deus lhe deu à sua língua que era de lâmina de navalha:
⏤ Mas que povo todo é este? E o que faz esta gente?
Então, Ernesto, capitão outro, haveria de lhe informar:
⏤ Capitão, tenha calma. Está ali o governador, e aquele pedação de bronze é um busto de um neto do coronel José Paulino, rapaz que fez livros com a vida de todos nós. E para o Pilar trouxeram e no Pilar estão fazendo esta festa [...]
Mas já que me trouxeram para esta praça, para ficar junto às aves do bosque e a Casa da Câmara, aonde o Imperador deu beija-mão, eu pediria, primo Vitorino Carneiro da Cunha, mais tolerância no teu áspero julgamento, não só para mim que nada fiz, como para os amigos que quiseram fazer de mim o que não sou, mas o que eles desejam que eu fosse, Capitão, com a bondade dos amigos não há quem possa”
⏤ Mas que povo todo é este? E o que faz esta gente?
Então, Ernesto, capitão outro, haveria de lhe informar:
⏤ Capitão, tenha calma. Está ali o governador, e aquele pedação de bronze é um busto de um neto do coronel José Paulino, rapaz que fez livros com a vida de todos nós. E para o Pilar trouxeram e no Pilar estão fazendo esta festa [...]
Mas já que me trouxeram para esta praça, para ficar junto às aves do bosque e a Casa da Câmara, aonde o Imperador deu beija-mão, eu pediria, primo Vitorino Carneiro da Cunha, mais tolerância no teu áspero julgamento, não só para mim que nada fiz, como para os amigos que quiseram fazer de mim o que não sou, mas o que eles desejam que eu fosse, Capitão, com a bondade dos amigos não há quem possa”
Acabada a solenidade em Pilar e antes de voltar para a capital do Estado, a comitiva se deslocou para visitar os engenhos da infância do romancista paraibano, em um percurso que foi descrito pelo cronista Paulo Mendes Campos (que então assinava os textos como M.C.) em sua coluna Primeiro Plano no Diário Carioca:
“Visitamos três engenhos: o de Corredor, onde nasceu José Lins do Rego, em uma bela casa, com um dos poucos remanescentes dos banguês da Paraíba; o engenho do Outeiro, onde se bebeu uma excelsa cachacinha de alambique de barro; o engenho de Itapuá, onde almoçamos, entre outros pratos, esplêndida buchada de carneiro. De volta a João Pessoa, de passagem por Santa Rita bebe-se do excelente caldo de cana da venda do sr. Moacir Macio”
Valdemar Cavalcanti, crítico literário de O Jornal, que em Maceió datilografou o Menino de Engenho a partir da quase indecifrável caligrafia de José Lins, escreveu sobre o ambiente que envolveu aquela volta do escritor a Pilar:Diário Carioca, 22.02.1952
“Homenagem maior não se poderia mesmo prestar a um romancista como José Lins do Rego — romancista da várzea, como o chamou José Américo; o encontro com o passado tinha que ser para ele a comemoração mais comovente.
A emoção que o assaltou à inauguração do busto não terá sido, por isso, nem mais forte nem mais duradoura que a emoção causada por certas lembranças e evocações, por velhas imagens e reflexos de outro tempo, por algumas figuras humanas insubstituíveis. Os que fomos á Paraíba para assistir as comemorações do cinquentenário do amigo querido tínhamos também que nos comover ante o espetáculo inédito.
Vimos, em carne e osso, cercando o autor, muitos dos personagens do Ciclo da Cana de Açúcar: senhores de engenho, trabalhadores do eito, moleques da bagaceira, pretas velhas, gente simples, corações rurais. E todos eles estavam ali, no maior contentamento, menos para louvar o conterrâneo glorioso, que para agradecer ao Dedé de antigamente o milagre de haver lhes garantido a sobrevivência. De fato, José Lins deu-lhes uma vida além daquela que eles vivem na rotina da várzea”.
Vimos, em carne e osso, cercando o autor, muitos dos personagens do Ciclo da Cana de Açúcar: senhores de engenho, trabalhadores do eito, moleques da bagaceira, pretas velhas, gente simples, corações rurais. E todos eles estavam ali, no maior contentamento, menos para louvar o conterrâneo glorioso, que para agradecer ao Dedé de antigamente o milagre de haver lhes garantido a sobrevivência. De fato, José Lins deu-lhes uma vida além daquela que eles vivem na rotina da várzea”.