Aos amigos Astenio Cesar Fernandes e Manoel Jaime Xavier Filho, pelas fecundas conversas semanais sobre Dante e Literatura. É muito ...

O Inferno em três momentos

dante divina comedia
Aos amigos Astenio Cesar Fernandes e Manoel Jaime Xavier Filho, pelas fecundas conversas semanais sobre Dante e Literatura.

É muito difícil destacar algo dentro da excepcional narrativa épica do Inferno, primeira parte da Commedia de Dante, dita Divina, a partir da classificação de um de seus mais fervorosos leitores e apreciadores, o escritor Giovanni Bocaccio. É difícil porque tudo é de suma importância e de grande beleza poética, a que se aliam os ensinamentos vários que ali se encontram e se sucedem. Gostaria, no entanto, de destacar três momentos, que são semelhantes, mas que guardam diferenças entre si, pelo contexto exterior à narrativa a que estão ligados.

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CaronteG. Crespi, 1695
Os três momentos marcam os encontros de Dante e Virgílio com Caronte, com o Minotauro e com Farinata. Trata-se de encontros em que o estranhamento, a desconfiança, a raiva, a soberba e o temor estão delineados, mas, conforme já ressaltamos, determinados por contextos diferentes. Vamos a eles.

O encontro de Dante com Caronte, no Vestíbulo do Inferno (Canto III, 82-129), é o mais explícito, em termos de diálogo com a tradição literária. Ele remete para o Livro VI da Eneida, quando Eneias, adentrando os infernos, é recebido pelo barqueiro do mundo inferior, cuja barca geme sob o peso do herói (gemuit sub pondere cumba sutilis, 413-414). Caronte encara Eneias com relutância, lembrando do ludíbrio de que foi vítima, quando da entrada do ilustre herói Teseu, vivo, na sua barca, com o intuito de raptar a esposa de Hades, Perséfone, a Prosérpina dos latinos.

É na travessia de Dante e Virgílio pelo Estige (Canto VIII, 25-27), no entanto, que reverbera o peso de Eneias, com a entrada do poeta florentino na barca de Flégias, de modo que sejam conduzidos a Dite, no Sexto Círculo, cidade que se estende até o Nono Círculo. Dante, como Eneias, é “alma viva”, no dizer de Caronte (anima viva, Canto III, 88), e, por isto mesmo, o seu peso faz ceder a barca (e sol quand’io fui dentro parve carca, Canto VIII, 27).

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A Barca de DanteE. Delacroix, 1822
Com relação a Dante, Caronte sente, mais uma vez, a presença de um mortal encarnado, tomando a sua barca para fazer a perigosa travessia da “triste ribeira do Aqueronte” (trista riviera d’Acheronte, Canto III, 78), as “margens horrendas”, de que fala Virgílio (ripas horrendas, Eneida, VI, 327); “nas trevas eternas, no calor, no gelo” (ne le tenebre etterne, in caldo e ‘n gelo, Canto III, 87), encarando o poeta florentino, tão desconfiado quanto quando pôs os olhos sobre Eneias. A presença do poeta Virgílio, autor do épico citado e guia de Dante – duca, segnore e maestro (Canto II, 140), além de dottor (Canto XVI, 13), conforme as designações que lhe são atribuídas no poema – só reforça a explicitude.

O MinotauroG. Watts, 1885
O segundo encontro, embora não necessariamente na ordem cronológica, se dá com o Minotauro, “a infâmia de Creta” (l’infamia di Creta, Canto XII, 12), guardião do Sétimo Círculo, responsável pela fiscalização da punição das almas que ali se encontram condenadas, como os homicidas da primeira fossa, submersos no Flegetonte, rio de sangue fervente. O Minotauro confunde Dante com Teseu e teme que o herói ateniense tenha retornado ao inferno, para, mais uma vez, matá-lo. Movido, então pela ira, a fera “concebida na falsa vaca” (concetta ne la falsa vacca, XII, 13) resolve atacá-los, provocando a fuga de ambos. Vê-se a alusão à vaca construída por Dédalo, em cujo seio Pasífae, “a adúltera que enganou o torvo touro com madeira/ 
e portou no útero o feto discorde”, ao ser coberta pelo touro de Posídon e, assim, engendrar o Minotauro (Metamorfoses, Livro VIII, v. 131-158)

O terceiro encontro é com Farinata degli Uberti, líder dos gibelinos, a facção política inimiga dos guelfos, a facção de Dante. Farinata ajudou a expulsar os guelfos de Florença, sendo ele também expulso, quando do banimento dos gibelinos, em 1300. O ex-líder gibelino encontra-se entre os heresiarcas, no Sexto Círculo (Canto X, 22-120), condenado às penas cabíveis por suas ações espúrias no mundo dos vivos, mas não aceita a condição de ter morrido e de estar ali como alma danada, numa situação diferente daquela que gozava, quando vivo. Ainda agarrado à vida que vivera, Farinata avança para Dante, levantando-se,
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Farinata conversa com DanteG. Doré, 1885
com desprezo e desdenhoso (dispitto, 36, e sdegnoso, 41), da arca em que estava encerrado, acreditando-se ainda em condições de promover crueldades e desatinos, resguardado pelo efêmero poder temporal que lhe tinha sido concedido, quando da sua atuação político-partidária, totalmente desprovida da ética política, como ação consciente do cidadão, tendo em vista o bem comum, conforme se encontra em Platão.

O que observamos nos três momentos são as atitudes diferentes que ocorrem em cada um deles. Nos dois primeiros, Dante se utiliza da ficção literária e mítica, para demonstrar a desconfiança e o ressentimento, no caso de Caronte, e demonstrar a ira vingativa, no caso do Minotauro, que chega a se morder a si mesmo (sé stesso morse, Canto XII, 14), numa alusão ao fato de que o homem, quando se deixa tomar pela ira, se animaliza. Estão aí presentes, a Eneida, Livro VI, aqui já citada, no episódio da descida de Eneias aos infernos, e as Metamorfoses, de Ovídio, no Livro VIII, que trata, entre outros episódios, da morte do Minotauro por Teseu.

No que diz respeito ao terceiro encontro, que reputo ser o mais importante, Dante não recorre à tradição ficcional, mas a uma realidade vivida, agora transfigurada pelo poder da ficção – as guerras intestinas entre gibelinos e guelfos, elemento dos mais importantes na sua obra, e, mais ainda,
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Farinata d. UbertiA. Castagno, S.XV
entre os guelfos, que se dividem nas facções branca e preta. Farinata degli Uberti (1212-1264) é a metonímia dos poderosos que se agarram ao poder, crendo-se inamovíveis, imortais e acima de todas as leis, inclusive as leis da Natureza e a lei do retorno. Estes vivem a exprimir a sua filáucia, sempre acompanhada de atitudes agressivas e do despotismo contra os demais que eles consideram inimigos, frágeis e passíveis de perseguição e de ódio.

O que mais me encanta, a ponto de falar destes três encontros? Os detalhes que passam despercebidos, para muitos que leem a Divina comédia como se estivessem lendo uma notícia de jornal ou um autor qualquer de uma narrativa qualquer, sem se dar conta da sua complexidade, exibida em cada um dos momentos do poema. Obviamente, esse tipo de leitor passa por cima da significância do texto, por menosprezar detalhes tão importantes.

É em momentos assim, e são muitos, conforme já dissemos, que passamos a entender que a boutade de Manuel Bandeira não é apenas uma boutade, é uma verdade incontestável. Quando o chamavam de grande, o poeta de “Vou-me embora pra Pasárgada”, respondia: “Grande é Dante”.

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