Pólos Para Gabriel Meu pai vestia uma pele de sonhos amarrotados. Tardava horas campeando pequenos nadas. Grande ...

O estalo da palavra (IV)

poesia capixaba jorge elias neto
 
 
Pólos
Para Gabriel Meu pai vestia uma pele de sonhos amarrotados. Tardava horas campeando pequenos nadas. Grande colecionador de figurinhas, trazia colada nos olhos sua fortuna de desejos.


A dor do corte
Violei o túmulo de minha mãe antes da sua morte. Dilapidei o que já eram escombros. Cobrei dela as palavras com que me lavava os cabelos. A palavra “verdade” – por exemplo.


Só sei que vou te amar
I A quantas anda a secura de tua boca? Fulgura ainda em teus lábios a liga do beijo? Entende que é breve o que se diz eterno. E que a intenção se revela no mesmo segundo em que a mão esbofeteia. II Esse teu ar sério de sapatos pretos... Percebes que esse para-raios na manhã de Sol, convida ao pouso? Esse medo indissolúvel de tua face denuncia o temor das grossas nuvens. III Estou aqui, sentado. Sobre minha cabeça chocam-se as nuvens. Sou indiferente; não porto guarda-chuva, dispenso relógio, sei perfeitamente as dúvidas que pretendo ter. IV Começo a perceber um certo arrepio de santidade através da tua camiseta. Não economizo, dou da mão as duas faces! Remexi a culpa que me compete. Cuspi a língua que me consome. Somente o riso, na antevéspera de teu gozo, ou teu mamilo rijo de agora – esse futuro e presente – horizontalizam meus pensamentos. V Bebi a cachaça das encruzilhadas; Roubei hóstias nas sacristias; o tridente do diabo enfiei no rabo da mãe de santo e fiz pior: encarei no olho do homem! Deito sujo em tua cama. Assim quero te dar meu desejo. O frescor da pureza? Não encontrarás na minha pele.


Sobre o mito de Sísifo
A labuta não respeita o portal das casas. Dentro e fora – rolam-se pedras. – Avisem-me quem joga o bilboquê de pedra dos dias. E segue o homem-bastão entre romper o barbante ou deixar que lhe caia sobre a cabeça o peso da tomada de consciência. O homem é um ser interrompido. Seja no curtume das horas ou nas contas do terço, ele sempre se agasalha com a tênue esperança. “roda peão, bambeia peão...” No absurdo de agora e à espera da vida eterna, Amém!


Cristo de pão
Herdei de meu pai esse Cristo forjado em miolo de pão. Esse crucifixo que, pacientemente, foi moldado no almoço de domingo; em seus dedos, amassado, em seus lábios umedecido. Um Deus criado pelo provedor de minha casa durante o eterno silêncio comigo repartido. E eu aprendi que da bolinha de massa se forja um ídolo. Ao final da refeição, meu pai me estendeu o Cristo na cruz. Eu o peguei e ele se partiu. Foi duro para mim ver Deus quebrar-se em minhas mãos.


Agora é tarde, pintei o muro
Para José Augusto Carvalho O alento da cristandade não sei se volta. Depois que reparei digitais humanas nos dedos de Deus, essas trincheiras me pareceram obsoletas; dissipou-se a taramela no pórtico do inferno. Comer todas as hóstias na infância – de uma só vez – só me serviu para matar a fome de Deus.

Poemas do livro Rascunhos do absurdo - 2010

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  1. Adorei. Naomsabia que você declamava tão bem. Obrigado por me dedicar o último poema dessa pequena e maravilhosa amostra de seu labor poético

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    1. Pois é, professor Augusto! Declamação com entonação, ritmo e dicção perfeitos. Deve ter um maestro por trás, aliás, à frente dele (rsrsrs)

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  2. Também não professor. Este projeto é fruto de uma conversa com Germano. Como falei com ele, nunca tinha lido meus poemas em voz alta... Nem participado de sarau ou eventos literários. Sempre considerei os meus poemas mais apropriados para o olhar do leitor...

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