Em 1988, o aiatolá Khomeini, então todo-poderoso líder religioso e político do Irã, decretou uma fatwa contra o escritor anglo-indiano...

O aiatolá e a faca que quase matou Salman Rushdie

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Em 1988, o aiatolá Khomeini, então todo-poderoso líder religioso e político do Irã, decretou uma fatwa contra o escritor anglo-indiano naturalizado norte-americano Salman Rushdie. A fatwa é um decreto oficial de condenação à morte e possui uma característica especial que aumenta consideravelmente sua letalidade, pois autoriza qualquer muçulmano, em qualquer lugar do mundo e em qualquer tempo, a cumpri-lo, ou seja, a matar aquele ou aquela objeto da sentença. No caso do referido escritor, a condenação deveu-se ao seu livro Os Versos Satânicos, que, segundo o aiatolá, teria ofendido a fé islâmica e seus seguidores.

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Celyn Kang
Escandaloso? Sim, pelo menos para os ocidentais não muçulmanos. Mas se nos dermos o trabalho de olhar para trás no tempo, veremos que a Inquisição católica matou com a mesma falta de cerimônia milhares de “blasfemos”, o que comprova que, quando vivida fanaticamente, a religião pode ser tão perigosa – e letal - quanto as ideologias e a política. Estarei agora sendo também blasfemo, pergunto-me. E respondo: é possível, valha-me Deus.

Desde então, Salman Rushdie viveu se escondendo (morou em nove casas diferentes no período de dez anos) e se protegendo, compreensivelmente paranoico com a real possibilidade de ser morto a qualquer instante. Pode-se até afirmar que essa permanente angústia e esse contínuo medo foram, sob certo aspecto, piores do que a morte em si, pois esta resolveria tudo rapidamente, de uma vez por todas, enquanto que a sua concreta possibilidade torturou-o silenciosamente durante mais ou menos 34 anos, até 2022, quando afinal o atentado se consumou, à vista de todos.

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Salman Rushdie David Shankbone
Foi num lugar ao norte do estado de Nova York chamado Chautauqua. Lá há um Instituto homônimo, onde, na manhã do dia 12 de agosto de 2022, o escritor ia fazer uma palestra. A ironia foi que Rushdie falaria exatamente sobre “a criação de espaços seguros nos Estados Unidos para escritores de outros lugares do mundo”. E tudo que faltou ali foi segurança, como se viu após o autor receber, quando já se encontrava no palco do auditório, aproximadamente 15 facadas, que por muito pouco não o mataram.

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Hall da Filosofia, Instituto Chautauqua (Nova York-EUA) CC0
Na época da agressão, ele tinha 75 anos de idade, quase um ancião, se bem que ainda bastante saudável fisicamente, e o agressor, 24, um jovem no vigor de sua força. O ataque durou apenas 27 segundos, tempo suficiente para Rushdie levar vários golpes de faca no rosto, no pescoço, na mão esquerda e no peito, sem falar na facada em seu olho direito, que atingiu o nervo óptico e o fez perder a visão. Até hoje não se sabe como ele sobreviveu a tantos ferimentos. Terá sido um milagre de Alá, como prova de que a fatwa tinha sido injusta? Não duvido.

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Salman Rushdie@SalmanRushdie/Twitter
Depois de diversas cirurgias e já fora de perigo de morte, o paciente começou a longa convalescença, de certa forma tão penosa quanto os ferimentos em si – ou até mais. Uma provação. Da qual, dentro do possível, ele se recuperou plenamente (com exceção do olho perdido) após alguns meses, até poder voltar a fazer o que sabe e gosta: escrever. E resolveu transformar a violência recebida em arte a ser doada ao público, relatando, não jornalisticamente mas literariamente, o atentado de que foi vítima e tudo que com ele estivesse de algum modo relacionado. O resultado dessa dolorosa reconstituição – e dessa criação – é o livro Faca, recentemente publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras.

O volume é sóbrio e relativamente enxuto (225 páginas). O título por si só já diz tudo, para o leitor a par dos fatos. E a capa do volume traz um desenho de um corte sob a palavra única e definitiva. Uma faca, sabemos, pode servir para partir o pão e para matar. Em si mesma, como objeto, é neutra. O bem e o mal que pode fazer dependem do humano que a usar. É sempre o elemento humano a introduzir o bem e o mal no mundo, pois as coisas e a natureza são amorais.

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No livro, o autor refere-se ao seu quase assassino apenas pela letra “A”. Não se preocupou em nomeá-lo, talvez por achar que nem isso ele merecia. Mas Rushdie, o leitor verá, não escreve com amargura nem com sentimento de vingança. Pelo contrário. Se não chega propriamente a perdoar o algoz, tenta compreendê-lo em sua ignorância, seu fundamentalismo, sua loucura. Isso já é meio caminho para a magnanimidade do perdão.

O fim do livro narra a volta do escritor, com sua atual esposa, ao local do atentado. Um reencontro com o começo de sua desdita, como que para fechar o círculo de sofrimento. As derradeiras palavras são “Terminamos por aqui. Vamos voltar para casa”. Um belo e correto final, pois a casa da gente, bem ou mal, é sempre um porto seguro, lugar onde, sempre supomos, estamos a salvo das maldades externas.

Mas a fatwa continua, uma vez que, ao que eu saiba, não foi revogada pelos aiatolás iranianos. Mais de trinta anos passados e Khomeini já morto, a antiga sentença condenatória está em vigor e, como no início, distante, muito distante do amor e do perdão, e provavelmente na contramão dos ensinamentos do profeta, se a leitura dos mesmos não for ao pé da letra. Salman Rushdie está vivo. Sobrevivente, mas vivo – e escrevendo sua literatura. Como bem pode ver o leitor, até agora a arte vem vencendo a faca.

E que assim continue para sempre. Amém.

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  1. Obrigado, Léo.

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  2. Parabéns, Francisco, por esta esclarecida abordagem. Continuação de bons trabalhos.

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  3. Obrigado, Lúcia. Gil.

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