Um gênio aquele meu colega de escola. Basta dizer que foi responsável pelo único desastre de avião ocorrido na cidadezinha onde moráv...

Inventor sem patente

nostalgia bicicleta
Um gênio aquele meu colega de escola. Basta dizer que foi responsável pelo único desastre de avião ocorrido na cidadezinha onde morávamos. Era época de carnaval quando ele vestiu a bicicleta com armação de arame grosso o suficiente para suportar um corpo de lona, hélice e asas. Tudo bonitinho. Parecia um teco-teco em branco e preto, as cores do seu time, o Vasco. Mas uma manobra arriscada com os pedais em alta rotação ocasionou o arrasto de uma das asas no piso de pedras e, em seguida, as cambalhotas que despedaçaram aquilo tudo. Piloto sem capacete, meu amigo sofreu
corte severo na testa e levou de volta para casa uma bicicleta com jeito de anzol.

O acidente, é claro, não o demoveria de outros intentos. Afinal, não ganhara à toa o apelido de Professor Ludovico, alusão ao personagem dos gibis de Pato Donald dado, também, a invenções que às vezes não funcionavam. Antes do São João daquele ano, nosso Ludovico era conduzido ao hospital para o engessamento do pé que aparara seu baque de uma altura de três metros, tão logo pulou do muro do Grupo Escolar Dr. José Maria. Neste caso, apesar de um bom reforço, o guarda-chuva do pai não lhe propiciou o paraquedas imaginado. Paciência... Santos Dumond, ele mesmo, também não nascera feito e pronto.

Como admirávamos aquele menino. Fazia, à perfeição, carrinhos de lata, ou de madeira, cujos faróis acendiam. Sempre cobrava pelos que produzia sob encomenda, mas, vez ou outra, era capaz de presentear com um deles um amigo sem dinheiro.

O Grupo Escolar o perdeu para a Escola Industrial de João Pessoa, precursora do moderno Instituto Federal de Educação Tecnológica com seus atuais cursos de terceiro grau e seus laboratórios limpíssimos. No seu tempo, não. Nos anos de 1960, aquilo era ambiente com pó e graxa. Ele fez, ali, o curso técnico na área de mecânica e dali saiu para montar a serralheria com a qual manteve, com bom padrão de renda, a mulher e os filhos.

Gosto mais dele quando me ocorre o que fez para Severino e Tereza, o casal que foi ao altar antes do término da adolescência e migrou para os guetos do Rio de Janeiro em busca do emprego nunca certo nem proveitoso.
Anos depois, o pequeno roçado de um dos pais, apenas rentável nos invernos, tinha aqueles dois de volta.

A Severino, ainda no Rio, não compensava acordar de madrugada e pegar três conduções a fim de receber o salário miserável conferido a ajudantes de pedreiro. Tereza saía-se, ali, de melhor modo, em razão do longo estágio nas panelas da Feira de São Cristóvão, onde aprendeu a cozinhar.

Certa manhã, já regressos a suas origens, ambos tiveram Ludovico num dos tamboretes defronte do caldeirão onde fumegava uma bela galinha à cabidela. Descoberta a vocação, a moça decidira vender na terra natal os pratos aprendidos longe de casa.

Conversa vai, conversa vem, nosso amigo soube que o juiz não conseguiu empregar Tereza na cozinha doméstica, apesar da promessa de salário bem acima do comumente dispensado, ali, às outras cozinheiras. Não tiveram melhor sorte o chefe da Coletoria e o exportador de sisal, dos quais a moça também recusou oferta idêntica de emprego.

Ludovico sequer tentou o contrato daquelas mãos bentas. Até porque não lhe parecia de bom tom oferecer tarefa doméstica àquela que nós tivemos, lado a lado, no banco escolar. Imaginou que Severino, com pouco ou nenhum preparo, poderia aprender algo nos setores de corte, soldagem e pintura da serralheria instalada na Capital, propriedade daquele arremedo de aviador de onde saíam esquadrias, grades e portões para bairros sucessivos. Desse modo, aqueles dois continuariam apaixonados e juntos. Isso, se o convite a Tereza fosse feito e aceito. Não ocorreu, todavia, uma coisa nem outra.

Foi a precariedade daquele conjunto de fogareiros, panelas, mesa e tamboretes toscos que despertou em Ludovico o projeto destinado a mudar a vida dos dois amigos de infância.

Semanas depois, a velha bicicleta de um dos filhos virava triciclo com duas caixas metálicas. A da frente, acoplada acima do pneu dianteiro, tinha tamanho suficiente para acomodar o carvão, uma pequena chapa e duas grelhas. Não passasse disso, seria semelhante ao baú das bicicletas de carga utilizadas pelas padarias para entregas de pães e bolos em pontos de revenda: lanchonetes, em sua maioria.

Era a caixa de trás o que mais impressionava. Tinha espaço para uma minicozinha, abas que se abriam para formar balcões e tampa que se transformava em teto quando elevada por tubos que se esticavam como as antenas de rádio nos carros antigos. Houve adaptações para pneus de motoneta, correntes mais fortes e pequeno motor a combustão.

Ganha sem custo nenhum, porquanto fruto do bom coração de Ludovico, a cozinha ambulante de Tereza e Severino, depois disso, servia almoço nas feiras livres, ia ao campo de futebol e, ainda, ao cinema, para vendas de pastel, empada,
cachorro-quente, pipoca, sucos e refrigerantes. Passado o tempo, proporcionou o dinheiro de que ambos precisavam para montar um restaurante de verdade.

Nunca entendi por que meu amigo não patenteou aquilo. É dele que sempre me lembro ao ver os triciclos leves, iluminados, coloridos que saem de galpões industriais para as ruas de hoje, aqui e lá fora, com seus circuitos elétricos, fogões, pias, bandejas e estufas para doces, bolos e salgadinhos. Em muitos recantos, são conhecidos por “food bike”, termo bem ao gosto da meninada.

Acontece que há pessoas assim. Há seres humanos a serviço da tecnologia e da ciência sem preocupação com a patente daquilo que inventam. Perguntemos a Santos Dumond que nunca registrou, comercialmente, seus projetos e descobertas. Perguntemos, ainda, ao Padre Azevedo, o paraibano que inventou a máquina de escrever. Ao também brasileiro Roberto Landell de Moura que já retransmitia vozes humanas à distância de oito quilômetros antes de o italiano Marconi patentear o rádio. Ao nosso Ludovico, então, nem é preciso perguntar.

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  1. Anônimo7/6/24 07:40

    Texto tão saboroso quanto a comida preparada por Tereza, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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