A narrativa do Mito de Narciso, presente no Livro III das Metamorfoses, de Ovídio, é uma das minhas preferidas! Nela, forma e conteúdo compõem um par perfeito! É interessante pensar como, de fato, o poeta/artista é um ser que transcende, pois consegue dar forma e expressar tão bem aspectos humanos através da criação. Há um fazer, uma técnica de que se utiliza, mas há, principalmente, um talento, que pode ser chamado inspiração, transcendência, espírito criador, enfim, trata-se de algo a mais, o toque de Midas que transforma determinado material em ouro, metal precioso pertencente à esfera dos deuses, diversa daquela dos homens comuns a que pertenço.
A mim, resta fruir, sentir a estesia provocada pelo resplandecer da arte e admirar o fazer do poeta a partir de algum entendimento advindo do estudo persistente e disciplinado.
Quanto a Narciso, de algum modo, todos já ouviram falar dele, seja pela fama da sua beleza, seja pela morte advinda do apaixonamento por si mesmo, ou mesmo pelo termo Narcisismo, próprio da Psicanálise, e também pelo emprego popular à pessoa autocentrada, denominada narcísica ou narcisista. É Ovídio, no entanto, que discorre, em belos versos hexâmetros, sobre a história de Narciso, aquele que sofrerá o reverso das suas próprias ações. O jovem de beleza quase divina comete a hýbris de desprezar o Amor, Eros, essa força fulcral da vida e imperativa a todos os seres viventes. Nesse sentido, ao ultrapassar o métron, ele provoca a ira da deusa Nêmesis, a justiça divina. Atendendo à súplica de um daqueles que foram rejeitados por Narciso, ela o condena a se apaixonar por si mesmo, mais precisamente, por sua própria imagem. Um dia, Narciso sai a caçar e, sedento por causa do calor, aproxima-se de um riacho cujas águas puras e cristalinas nunca foram tocadas por animal ou homem algum. Nesse instante, ele é arrebatado pelo apaixonamento de si mesmo, e aquilo que é imagem, acredita ser outro sem o qual não consegue viver. E assim acontece, tão perto e tão distante do amado, ao mesmo tempo, não se alimenta mais, nem descansa, passa o tempo a contemplar uma ilusão e definha até a morte.
O famoso quadro de Caravaggio, que está no Palazzo Barberini, em Roma, retrata um instante dessa narrativa mítica, o exato momento do encontro entre Narciso e o reflexo da sua imagem no espelho d'água, mais precisamente, do seu apaixonamento por ela. A imagem está na internet, qualquer pessoa tem acesso a ela, mas poder ver a obra pessoalmente não tem comparação, é uma experiência única. Apesar de já haver traduzido esse texto do original latino para a língua portuguesa e de haver trabalhado muito esse mito em sala de aula, além de ter escrito artigos sobre ele relacionando-o à Psicanálise, e mais que isso, apesar de ter vindo a Roma algumas vezes ao longo dos anos, apenas agora, nesta última viagem, fui ao Palácio Barberini, a fim de ver, na tela, essa belíssima narrativa. Mas acredito que tudo tem a sua hora certa para acontecer. Vendo-a pela primeira vez neste momento, depois de maturar a leitura do mito no poema ovidiano, certamente, permitiu-me ter um olhar mais acurado da obra-prima, o que possibilitou uma fruição mais intensa.
A experiência foi indescritível, pura estesia. Cheguei ao Palácio, antiga morada do papa Urbano VIII, Maffeo Barberini, adentrei o jardim e alcancei as escadas. Senti um impacto pela grandiosidade do lugar, quanto à sua dimensão e à sua beleza, poderia ficar horas a fio admirando os detalhes do conjunto arquitetônico. Segui a visita conforme as indicações, ansiosa pelo tão esperado encontro com Narciso. Passei pelas salas e me detive, aqui e acolá, diante de outras pinturas notáveis, como O Rapto das Sabinas, de Sodoma, O Retrato do Papa Urbano VIII, de Bernini, As Três Parcas, de Bigio, O Retrato de Henrique VIII, de Hans Holbein, A Virgem com o Menino, de Botticelli, La Fornarina, de Raffaello Sanzio, e tantos mais, até que, finalmente, cheguei ao aposento onde está a tão almejada obra-prima. Que emoção! Por mais que se tenha uma foto com a melhor resolução, não se compara a apreciar o quadro ao vivo e a cores. As tonalidades parecem diferentes, mais vivas, a expressão do rosto de Narciso mais marcante, o contraste das tintas mais intenso, tudo parece mais vivo pessoalmente. Permaneci um bom tempo diante dele, apreciando, apenas apreciando tanta beleza.
Sentido horário: Retrato de Henrique VIII (Holbein II, 1540), A Virgem com o Menino (Botticelli, c.1490), La Fornarina (Rafael, c.1516) e O Rapto das Sabinas (Sodoma, S.XVI) ▪▪▪ ImagensA. Albertim
O instante capturado por Caravaggio diz respeito ao ápice do páthos de Narciso. É possível ver, em seu semblante, o sofrimento pelo amor não correspondido, as sobrancelhas levantadas tensionando a testa contraída, o olhar ansioso, a boca semiaberta a pronunciar algo, tentando se fazer ouvir pelo amante indiferente, a face compungida. A pintura, com o contraste do escuro a circundar Narciso e o claro a lhe iluminar a face e as roupas, evidencia o páthos do jovem rapaz, preso na escuridão de si mesmo, pois ele não consegue ver além dele próprio. Esse instante se encontra em um trecho da narrativa do mito feita por Ovídio, que o descreve pictoricamente, levando-nos a imaginar tamanho desespero e sofrimento. Caravaggio, por sua vez, dá vida e brilho a esse flagrante único que faz parte de um todo narrativo, tornando-o obra de arte. Aquilo que Ovídio narra em palavras, a saber, o sofrimento de Narciso, Caravaggio mostra através da pintura. Ambas as formas suscitam a estesia, artes que tocam a nossa sensibilidade e conversam com a nossa subjetividade.