Há casos de relações humanas que sofrem devido à superficialidade em que estão sustentadas. Um sintoma dessa aflição é a crueldade de dominar o outro e viver preso a mentiras, o que tem levado as pessoas a perderem a capacidade de reconhecer a essência e o valor únicos de cada indivíduo. Esses padrões são alimentados por uma ideologia controladora que impõe comportamentos como normas discriminatórias, tornando difícil distinguir a realidade da artificialidade
Apesar dos desafios de se discernir a verdade em uma sociedade tão repleta de falsidades, é possível realizar exercícios de consciência para construir relações autênticas. A aplicação do pensamento crítico, por exemplo, ajuda a refletir sobre as próprias ações, a entender o que é essencial para a dignidade e a se libertar dos falsos ideais impostos pela sociedade.
Caso a existência humana fosse eterna e sem sofrimento, talvez ninguém se questionasse sobre a razão de ser do mundo. Nesse contexto, os filósofos buscam encontrar significado nas aparências do mundo que explique a presença do ser humano. Alguns deles recorrem à metafísica em busca de uma ordem aparente que justifique a existência, conectando e revelando todas as coisas, como a bondade, a verdade e a beleza. Nesse sentido, o filósofo grego Platão (428/427 a.C. - 348/347 a.C.) apresenta em seu livro A República (400 a.C.), no capítulo VII, a "Alegoria da Caverna", que trata do conhecimento da verdade.
No livro VII, Sócrates (470-399 a.C.) descreve a Glauco (século IV a.C.) a ideia de uma caverna onde prisioneiros passaram toda a vida desde a infância. Com as mãos atadas à parede, eles só conseguem ver sombras projetadas na frente, criadas por uma fogueira atrás deles e um tapume. As sombras e ecos dos sons eram tudo o que conheciam do mundo. Quando um prisioneiro é libertado e vê pela primeira vez a verdadeira fonte das sombras, fica surpreso e assustado ao sair da caverna e encarar o mundo exterior. A intensidade da luz solar ofusca sua visão, levando-o a sentir-se perdido, desconfortável, fora de seu espaço. Gradualmente, seus olhos se acostumam à luz e ele começa a perceber a vastidão do mundo e da natureza além da caverna. Ele compreende que as sombras que antes considerava a realidade são, na verdade, meras representações distorcidas de uma pequena parte da verdade. Ao se libertar, o prisioneiro enfrenta duas escolhas: voltar à caverna para libertar seus companheiros ou desfrutar de sua própria liberdade. Embora possa ser tido como louco por seus colegas, a primeira opção talvez seja a mais justa e necessária.
Através dessa metáfora, Platão ensina que existe uma forma de conhecimento para o exercício da sabedoria e da justiça. Assim, a "Alegoria da Caverna" pode ser entendida da seguinte maneira:
◼️ Os indivíduos aprisionados: são aqueles que habitam um universo confinado, enclausurados por suas convicções inflexíveis;
◼️ A alegoria da caverna: representa o corpo humano e os sentidos, os quais são considerados por Platão como origens de um entendimento falso e ilusório;
◼️ As formas sombrias projetadas na parede e os sons reverberantes dentro da caverna: simbolizam distorções visuais e auditivas, representando incertezas, concepções equivocadas e um conhecimento limitado típico do senso comum;
◼️ A saída da caverna: simboliza a procura pela sabedoria;
◼️ A luz do sol: é associada à razão e à filosofia.
De acordo com Platão, libertar-se da inércia intelectual ocorre quando a busca pela sabedoria se alinha à bondade, visando ao bem-estar coletivo.
Encerro com este texto da escritora e tradutora brasileira Lya Luft (1938 – 2021):
“Para viver de verdade, pensando e repensando a existência para que ela valha a pena, é preciso ser amado, e amar, e amar-se. Ter esperança, qualquer esperança. Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas, mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas enfrentar o ruim aqui e ali. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso, apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for. E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.”