Dimensões As palavras estão sempre lá, com seus olhos atentos a me observarem do silêncio.

O Estalo da Palavra (III)

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Dimensões
As palavras estão sempre lá, com seus olhos atentos a me observarem do silêncio.


Big bang
A noite que me pariu tinha a boca negra. Inspirou profundo seus horrores, soprou os filhos nessa nau clandestina. Venho das coxas quentes, nasci resfolegando. Pequeno, segurei os pés da morte quando fora se jogar do nono andar. Mais velho, tentei tirá-la da cabeça de meu pai (“Filho, segura a cabeça do papaizinho.”) Queria poder dizer: Venho de um corpo transluzente. Mas desarranjaria o poema e seria uma grande mentira.



Tenho algumas verdades litorâneas. Dessas que não molham os pés, mas se empanturram de areia e saem se enterrando ao mínimo sinal de proximidade do desconhecido. Não sei quantas vezes li que as flores persistem. Assim também são essas verdades.


A prazo
Levem-me as horas para os caprichos mundanos! Já destaquei a etiqueta. Tomei posse do indivíduo. Será que não veem no meu antebraço o carimbo de “pago”?


Noir
Disseste que a corda apazigua os desencantados. Disseste que a terra treme nas bordas do despenhadeiro. A terra não tem nada a ver com teu descontentamento. Ela é acima de qualquer suspeita. É que a luz só atinge tuas costas. Hoje, a estupidez não é mais um traço: é um demônio que se agiganta.


Balada da carne
Já que o dia é par, falemos de amor. Já que à frente sempre restará o horizonte, não me enterrarei além dos olhos. Já que é no vazio insalubre da cura que se percebe a alma evanescendo, tragam-me uma taça. Já que eu disse sim, limitem os convidados presentes à minha embriaguez. Já que a palavra é uma puta, rasguem o poema. Já que a rima é farta; e o poeta, um estorvo, que se recompense o primeiro idiota a me cortar a carne.


Rotina
Convivia-se com a conformidade de ter o universo próximo de casa. O espaço delimitado pelo absurdo traço da conveniência era marcado pelas solas dos sapatos (e trazia a fotografia do mijo fora da privada). Para o gozo o número era par. Pouco importava a singularidade da morte.


Poema para o homem contemporâneo
Que imagem do mar te despertará da cegueira? Que suplicio do individuo te resgatará do tédio? Que requinte de perversão te desviará do desterro? Diz-me que a poesia não constrói sentido. Que ela não diz nada; mal diz sobre as sobras. Existirá realmente acaso nesse azul derramado sobre teus ombros? E esse cadarço do teu pé esquerdo Que insiste em se lançar na vida? Eis a liturgia do ser cético; eis meu credo: um poema diletante que roga à tua carne a fratura que os ossos recusaram. Que tem uma ambição desmesurada: o ressurgimento do homem desse trono de lama.


Brava gente
Sempre haverá uma boca do inferno mastigando [asas de querubim. Bocas escorrendo gordura exclamando babujadas: que bunda!... Bocas abertas, implorando hóstias. Bocas abertas, recebendo gozo. Bocas abertas, reclamando o justo, dizendo o justo que lhes convém... Bocas com hálito de tabaco, matando-se aos poucos. Bocas ordenhando favores, ordenando que se fechem outras bocas, involuntariamente abertas, definitivamente abertas, fechadas por outras. Haverá sempre alguma boca ruminando o nascente ou o poente; Bocas dirão amém! Outras irão além e se esquecerão do dito. A boca dizendo do amor, do dissabor. A boca e seu duplo propósito: seduzir os sentidos enquanto come o coração.


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