Existem duas ladeiras escarpadas desaguando para a Rua da Areia das quais nunca me senti livre: a Feliciano Coelho e a Peregrino de Carvalho, que exigiam o máximo de nosso fôlego para se chegar ao cume que era a Rua Nova com o belo portal de sua biblioteca universal e, do outro lado, à Rua Direita, o sonho do meu primeiro emprego, base e mirante ansioso de quase tudo a que pude chegar na vida.
Não há um gol, ainda que ajudado pela trave, desde os idos de 1952, quando passei a revisor remunerado de A União e de O Norte, que não tenha sido armado no cenário dessa antiga plataforma. Café Alvear, Filipeia e outras saudades em livro ou nas muitas centenas de escritos deixam ver ou entrever a peleja tímida desses sonhos desde uma véspera de 21 de abril de 1947.
Por que a data? Creia-me você, Chico Viana, que é sempre onde me vejo ao ter premiações como a de suas palavras nesse solstício de junho de agora, a mim trazidas pelo celular de um dos meus filhos. Como consta de crônica antiga, seu pai, o professor João Viana Correia, surge-me invariavelmente a cada uma dessas distinções ao chamar a atenção da classe para a pequena dissertação de um ginasiano iniciante que não era o nota dez em gramática. A distinção tão remota ressurge a cada apontamento generoso, seja a do venerando Celso Mariz impressa em Figuras e Fatos de 1976, ou as de mestres atuais do seu porte humanista de crítico-literário. Seja o dos atuais formadores de opinião cultural e política como as notas recentes de Rui Leitão, Germano Romero, José Nunes, Alberto Arcela, Abelardinho Jurema, Flavinho Sátiro, Luiz Carlos de Souza, Afra Soares, só para citar os que cheguei a ler nesta última semana, além das felicitações amigas ou de registro como a do Pleno do TJ a dividir tais honras com o presidente também aniversariante, iniciativa, no meu caso, do desembargador José Ricardo Porto, continuador das amizades do pai Sylvio, jurista, político e sobretudo homem de espírito.
Tudo tão distante, sumido no tempo! Mesmo assim o velho coração ainda pulsa essa emoção seminal (e aqui recorro sem remédio à linguagem de mestre Hildeberto) da fala propulsora do professor Viana perturbada pelo apito da fábrica quase vizinha ao Pio XI. No mesmo elenco de cenas entram as duas ladeiras que abrem esta pobre recherce. Cenas que sempre surgem casadas, a subida penosa até a colina tangida por aquela voz forte que a sirene da fábrica não logrou abafar de todo.
Como gravou o velho Celso Mariz, ”o moreno pálido vinha de Alagoa Nova, passando por Campina onde não sei se foi estudante ou vagabundo. Sei que trazia de lá bolsos vazios e poucas roupas, uns sonetos que nunca ninguém viu e a aspiração de debutar na imprensa, aqui na Capital”. É essa aspiração espiritual que nunca deixa de se associar à exigida pelas duas ladeiras que me trouxeram da nota do Viana pai para a do Viana filho. Como isto é possível? indago à imagem da Conceição que a mãe adotiva de minha mãe deu-lhe de presente de casamento em 1914. Outro materialista como eu e que muito me ajudou literária e ideologicamente, o inesquecível Geraldo Sobral, não fez por menos quando se viu agredido à faca na porta da Misericórdia por encomenda política: “Valha-me Nossa Senhora!” foi o que ouvi ao me juntar ao lavador de carro que o socorreu.
*originalmente publicado no jornal A União