Leio que a semana começou com feriado, em Portugal, onde o 10 de Junho, data nacional, também conteve celebrações a Luís Vaz de Camões, o gênio da literatura saudado em todos os recantos como o maior poeta da língua portuguesa. A ele, sim, por sobras da festa pelos 500 anos do nascimento em 24 de janeiro e, ainda, pelo culto à data da sua morte, em 1580, há 444 anos completados segunda-feira passada.
Em abril deste 2024, os portugueses também já haviam celebrado os 50 anos redondos da Revolução dos Cravos, o movimento pacífico que sepultou a abjeta era salazarista. Tudo isso foi revivido no início da semana com emoção redobrada, ao que depreendo de umas tantas leituras.
Quem acessou o Portal do Governo Português, edição do último dia 10, leu que as celebrações à data se estenderiam, ao longo da semana, por 16 Países, em quatro Continentes, com a participação de oito Secretários de Estado e sete Ministros, um deles o Primeiro Ministro Luís Montenegro, em visita oficial a Genebra, Berna e Zurique, na Suíça. É programa que envolveu a presença de representantes de Portugal em Luxemburgo, França, Alemanha, Timor-Leste, Macau, Angola, Canadá, Argentina, Marrocos, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Estados Unidos e África do Sul para apertos de mãos e, é claro, acertos nos campos da cultura e do comércio. O Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Nuno Sampaio, foi destacado para Brasília.
“Portugal não é só a memória dos fracassos”, discursou o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa em Pedrógão Grande, por onde começaram as festividades do Dia consagrado à Nação, a seu poeta maior e às Comunidades Portuguesas. “Orgulhosamente, vivemos 900 anos”, lembrou o mandatário em trecho do discurso reproduzido pelo jornal português “Correio da Manhã”.
Vamos, contudo, ao homenageado. A peste que assolou a Lisboa do Século 16 motivou o abandono a Camões, originário de família nobre, num abrigo para indigentes, onde morreria pobre e esquecido. Leio que, aos 23 anos, ele ingressou nas tropas portuguesas partícipes das batalhas do Norte da África de onde voltou à terra natal com menção por bravura e sem o olho direito. Rebelde, crítico ferrenho da tirania, dos desmandos e da corrupção, logo estaria na mira dos poderosos. Incluam-se, nessa lista, alguns governantes, membros da Igreja Católica e adeptos da Reforma de Lutero. O “diabo zarolho”, disseram dele, ao cabo da carreira militar.
Ainda nos bancos escolares, foi acusado de paganismo. Há os que se espantam com o fato de que haja escapado da Santa Inquisição. Mais tarde, em Coimbra, abandonou a universidade mal havia nela ingressado. Em Lisboa, para onde mudou-se, foi aceito como poeta lírico pela Corte onde gente de menor talento já era bem-vinda. Teve, porém, o prestígio logo cassado em razão da intriga fomentada por seus desafetos. As prisões sucederam-se para um Camões briguento e contemporâneo de Shakespeare e Cervantes no século do renascimento das artes, mas, também, dos grandes conflitos políticos e religiosos.
Contam-me as mesmas fontes de seu envolvimento com mulheres da nobreza e dos prostíbulos. Nessa matéria, aquela alma travessa parecia não fazer distinção. Também falam que salvou o manuscrito de “Os Luzíadas”, ao cabo de um naufrágio a caminho de Goa. E que isso significou o afogamento de Dinamene, a chinesa por quem se apaixonara. Seria uma coisa, ou outra. Não haveria como salvar as duas. Trata-se de história, porém, que outras fontes preferem tomar como lenda.
Tragamos o tema, agora, para o Sertão nordestino. Se bem não sabiam de Camões, os habitantes do Semiárido brasileiro aprenderam, à sua maneira, na era de ouro da literatura de cordel, sobre o destemor a serviço da igualdade, sobre a audácia que supera a sujeição, sobre o bom combate à tirania e à injustiça. Foi quando, por aqui, Camões virou Camonge, ambos com a mesma substância, porém com meios, formas e humor diferentes.
A cópia sertaneja também tem o rei como inimigo, mas, ao contrário do original, tem a zombaria e o deboche nas veias. Tem os modos de Pedro Malazarte, a figura comum aos contos populares da Península Ibérica e do Brasil, como narra Câmara Cascudo. O João Grilo de Ariano, por sua vez, parece guardar bom parentesco com o Camonge dos cordéis e das anedotas regionais.
Uma delas: O rei pediu que Camonge fizesse chover ouro. E o castigou ao não ser atendido. Os soldados deveriam trancá-lo numa caixa e atirá-lo ao mar. “Eu morro, mas não caso com a filha do rei”, gritava ele durante a passagem por uma fazenda, a caminho do suplício. Inteirado do que se passava, o fazendeiro propôs a troca das terras, da casa e do gado que então possuía pelo lugar na tal caixa, certo de que o senhor daquele reino o teria como genro. Dias depois, o mesmo rei se assustava ante a visão de um Comange não apenas salvo das águas, mas, ainda por cima, endinheirado. “No fundo do mar tem muitas riquezas, majestade. Tem boi, ouro e diamante”, assim explicou Camonge o milagre da sua transformação ao rei maravilhado ao ponto de, ele mesmo, determinar que o jogassem ao mar numa caixa lacrada.
Outra mais: Antes de viajar, o rei pediu que Camonge pusesse para sorrir os bichos do castelo, sob pena do enforcamento. Quando retornou, viu que os cavalos, os bois, os carneiros e os porcos tinham os semblantes alegres, com os dentes à mostra. Camonge lhes cortara os beiços.
De outra feita, nosso herói foi obrigado a sentenciar a própria morte num letreiro à porta da casa: “Camonge morre amanhã”. Não é preciso dizer que a sentença jamais pôde ser cumprida. O “amanhã” obrigava os soldados a ali voltar todo santo dia.
No folheto com assinatura de Severino G. de Oliveira, “As perguntas do Rei e as respostas de Camões” (e não Camonge, observe-se), o moço decide vingar-se daquele que, dias antes, tentara, sem êxito, dar-lhe um banho de urina. Falou ao rei da descoberta de uma botija (dádiva das almas penadas aos humanos capazes de desenterrá-la) e o conduziu ao local.
Aos versos:
Camões foi ao sobrado
E um buraco cavou
Depois comprou uma jarra
No mesmo canto enterrou
Começou a obrar dentro
Até que superlotou
Quando a jarra estava cheia
Camões cobriu desta vez
Com cem moedas de ouro
E saiu com rapidez
Foi convidar o rei mesmo
No dia que fez um mês
O rei saiu com Camões
Sem fazer cara de choro
E quando chegou no quarto
Que viu o grande tesouro
Disse, Camões, eu preciso
Tomar um banho de ouro
Pegou a jarra, amarrou
Sobre os caibros do telhado
Ficando debaixo dela
Bateu com um ferro pesado
Quando a jarra abriu em banda
Foi merda para todo lado.
Assim mesmo: a absoluta desmoralização dos déspotas e, por extensão, dos sistemas que subjugam e aniquilam os fracos e oprimidos. A vingança mais extremada, a reação mais forte dos degradados, dos que perdem a esperança e a fé em tempos melhores. Eis que a oralidade dos matutos, suas histórias contadas de geração em geração, reinventaram Camões nos alpendres da zona seca, a mais pobre e sofrida de um País ainda muito longe da igualdade e da justiça social.