Meu Bom Evandro, velho Druzz de guerra, Gostaria de valer-me de sua erudição e das valiosas informações que você tem guardadas e...

Carta a Evandro (Druzz) Nóbrega

biblioteca livro antigo turba togata
Meu Bom Evandro, velho Druzz de guerra,

Gostaria de valer-me de sua erudição e das valiosas informações que você tem guardadas e acessíveis, seja na sua prodigiosa memória, seja na sua inimaginável e borgeana Biblioteca física.

Não sei se o amigo sabe que, estando em Coimbra para um período de estudos, encontro-me hospedado no Seminário Maior da Sagrada Família. Em uma das suas várias bibliotecas, meu amigo, tive a grata surpresa de ter achado o que se pode chamar de alfarrábio. Numa das minhas frequentes visitas à biblioteca da cafetaria, como se diz por aqui, passava uma vista pelos livros
biblioteca livro antigo turba togata
M. Marques Jr
que se encontravam à altura dos meus olhos, e, de modo abrupto, minha visão foi capturada por um dorso maltratado de uma brochura não menos. Como diria o Bruxo do Cosme Velho, vê-lo e amá-lo foi obra de um só instante, Evandro.

Retirei o exemplar da prateleira onde ele se encontrava espremido entre dois grossos volumes, um Manual de História Bíblica (Manuale di Istoria Biblica), outro do Studia, abrigando vários estudos teológicos, que davam a sustentação para a Sinopse dos quatro Evangelhos (Synopsis quatuor Evangeliorum), em grego e em latim, e a um Compêndio de Liturgia. De imediato, meu amigo, pensei que o pequeno livro estava bem protegido entre tantos pilares formais da Igreja. Para minha surpresa, amarfanhado como se encontrava, o livrinho não tinha título, nem nome de autor ou qualquer referência de data, lugar e editora. Para piorar a situação, meu Bom Evandro, as primeiras páginas estavam arrancadas, com o livro já começando in medias res, um verdadeiro suplício para um neurótico leitor, cheio de toques, como eu, e que gosta das informações iniciais.

biblioteca livro antigo turba togata
M. Marques Jr
A surpresa não para por aí, porque folheando-o rapidamente, vi tratar-se de uma obra de ficção, cujo final, infelizmente, tinha, igualmente, desaparecido. Não esmoreci, Druzz, e fui adiante. Pedi permissão ao Padre-Reitor e levei-o para o claustro, de modo a lê-lo na cela que me serve de gabinete de estudo. Assevero ao querido amigo que perdi a noção do tempo, só me dando por satisfeito quando, terminada a leitura, vi a Aurora Dedirrósea dando o ar de sua graça, pelo vidro da janela.

A história é simplesmente fascinante. Infelizmente, o exemplar é único e não tive permissão para copiar, digitalizar, fotografar ou tirá-lo dos limites do Seminário. Para que eu obtivesse a permissão de trazê-lo à minha cela, tive que concordar que um irmão oblato, há anos instalado aqui, ficasse à porta para levá-lo de volta à biblioteca, tão logo eu terminasse a leitura,
Na minha clausura ▪ Seminário Sagrada Família, Coimbra.
assegurando que eu não teria feito qualquer cópia do volume. Aceitei, porque o pouco que tinha lido, à vol d’oiseau, quando descobri o livro, extasiou-me e entranhou-me, de tal modo que o sentia na medula, percorrendo todo o meu corpo. A única permissão que tive foi de fazer a foto do seu dorso, como se pode ver.

Como não disponho de outro meio, nem consigo guardar só para mim o conteúdo do que li, decidi recorrer ao amigo, com duas intenções. A primeira é que preciso dizer o que nele existe que tanto me excitou o ânimo. A segunda é que preciso da sua expertise de linguista, filólogo, poliglota, erudito, bibliófilo e biblióvoro, pesquisador insone, cujos imensos arquivos guardam preciosidades. Tentarei, portanto, fazer um pálido resumo do que é a obra, com a esperança de que o amigo possa me ajudar.

Num tempo que nunca existiu, mas que desde sempre acontece, uma divindade suprema, chamada apenas de Deus Pai, casa-se com uma outra divindade, detentora da sabedoria, conhecida como Astúcia e, logo em seguida, a engole, para que seus dotes permaneçam dentro de si e ele seja conhecido como o mais sábio e o mais astuto, aquele cuja visão é a mais ampla. Esqueci de dizer ao amigo que o livro é escrito com o auxílio de várias línguas, sendo predominantes o grego e o latim, formando uma língua batizada pelo narrador de Neoglossa. Faço um apelo à atenção do amigo, para o fato de que, nessa língua estranha, muitos termos que nós conhecemos têm os seus significados transformados
a ponto de nos conduzir a sentidos opostos aos que usamos frequentemente.

Deus Pai vai mais adiante, Druzz, e, achando-se esperto, casa-se com outra divindade conhecida como a Justiça Divina, aquela que se impõe universal e consuetudinariamente. Agaloado, portanto, com a Astúcia e a Justiça divina, esta, incontestável, irrecorrível e, que ele cria, infalível, Deus pai engendra na nova esposa um par de filhas trigêmeas, as primeiras sendo responsáveis pela harmonia das relações; as segundas, pelo cumprimento do destino, do quinhão que a cada um cabe, mortais ou imortais. O texto, propositadamente, compõe a história com aquelas, deixando, no entanto, nas entrelinhas que as filhas detentoras do destino, encabeçadas por Clotilde, são as que ajudam a tecer o fio do que vai acontecer.

Dika, uma das filhas que deveria zelar pela harmonia, garantida pela indissociação com as outras duas irmãs, Bonalex e Pax (esta, por vezes, chamada de Irene, Εἰρήνη), começa a sua cruzada colocando na cadeia os corruptos, enchendo como nunca se havia visto, a prisão local, de nome bucólico Casa Virente (Domus Virens), dando a todos a esperança de que o reino viveria, enfim, longos períodos de crescimento, fartura e felicidade, livre da praga que, há milênios, o assolava.

Um dia, Dika resolve deixar de lado a sua função primordial e se imiscui completamente no mundo dos homens, tomando o partido de alguns, em detrimento dos muitos outros, após mandar as irmãs às favas (ad fabas sorores misit). Num ímpeto louco de agradar os poderosos e inconformados, Dika aparta-se também do pai e, tomando o freio nos dentes (frenum in dentibus cepit), condena a mãe a sentar-se vendada, com a espada sobre as coxas, inerte, sem qualquer função; espada que, antes, era brandida de olhos abertos, para coibir o desrespeito às Leis Maiores (Mos Maiores)
constituintes da base harmônica e justa daquela sociedade fictícia. Todos os que estavam na Casa Virente são soltos, sob a alegação de que, de acordo com a Neoglossa, corrupção é decência e decência é corrupção; impunidade é justiça e justiça é impunidade; a verdade é mentira e a mentira é verdade; humanismo é terrorismo e terrorismo é humanismo... Fica claro e estabelecido que, como nova diretriz do reino, não é importante o que se diz, mas quem diz. Lembrei-me, meu douto amigo, de um trecho de José Saramago, no grandioso Memorial do Convento, em que ele, referindo-se à pia instituição da Inquisição diz:

“...querendo o Santo Ofício, são más todas as razões boas, e boas todas as razões más, e quando umas e outras faltem, lá estão os tormentos da água e do fogo, do potro e da polé, para fazê-las nascer do nada e à discrição...”
p. 210

Vendo-se solta e acreditando-se muito poderosa (praepotens), Dika tem uma ideia brilhante, para dar sustentação a seus atos: criar o Fórum da Verdade (Forum Veritatis), partindo dela a conceituação definitiva e irretorquível do que é verdade, julgando tudo o que se desviar da sua definição pessoal e subjetiva, e punindo severamente quem, segundo a sua compreensão,
divulgar notícias falsas (ψευδαγγελίαι). O resultado foi o mesmo, Druzz, de uma faúlha, num rastilho de pólvora. De repente, não mais que de repente, levantou-se uma horda de incorruptíveis fiscais (mouchards) da Verdade, aplaudindo a medida e prontos para apontar o dedo e denunciar, como pseudangelia, a chamada mentira falsa, qualquer fala, escrito, símbolo e até intenções, ainda ocultas no pensamento, cujo único intuito é abalar o inatacável Fórum da Verdade, contribuindo para a destruição das instituições.

Tendo como lastro a Neoglossa, todas as prisões anteriores foram anuladas, todos os inquilinos da Casa Virente foram soltos e considerados honestos e de reputação ilibada. Em contrapartida, todos os que acreditaram em Bonalex e em Pax, mantenedoras da antiga Dika, passaram a lotar as dependências da Casa Virente, por serem perigosos doentes, com grave deformidade de caráter, capazes de solapar as sólidas bases do reino, que faz da verdade a sua luz... Aí terminou a minha leitura.

Infelizmente, meu caro Druzz, faltam as páginas finais. Só conheço o desfecho por causa de um escoliasta, que fez um esquema no verso da última folha. Se entendi bem a letra, custosa a decifrar, e se encaminhei de modo certo a tradução, há uma terceira parte da narrativa, que remete a nova reviravolta. Dika, após muita reflexão, chega à conclusão de que ela e os seus beneficiários são os únicos responsáveis pela derrocada do reino, pelo repúdio das duas irmãs, Bonalex e Pax, que retornam, enojadas, aos braços do Deus Pai. Sendo assim, Dika toma a iniciativa de se aprisionar a si própria e a seus asseclas, ad aeternum, na Casa Virente, jogando a chave fora.

Na ausência da narrativa, em si, meu Bom Evandro, contentei-me com o escólio, mas sem perder a esperança de que o amigo, na sua erudição, conheça a narrativa em questão e tenha, quem sabe, algum exemplar perdido na sua Biblioteca. É a única forma de não perder a catarse que me provocaria o final do texto. Catarse, Druzz, antecipada pelo autor, numa frase maravilhosa, aproveitando-se de um termo do poeta latino Marcial — turba togata —, para exprimir os que se apropriavam da toga laticlava do Senado Romano, mas sem as condições devidas para envergá-la: “A canalha não odeia a poesia, mas a ironia” (Turba togata non poesim, sed ironiam odit).

Finalizando, Druzz, tenho em mãos, ainda que incompleto, um texto que só a ficção seria capaz de criar. Mesmo que esses fatos se realizassem, seria impossível a alguém acreditar que eles tivessem acontecido ou estivessem acontecendo.

No mais, meu amigo, um grande abraço desta Coimbra, cuja Primavera insiste em ser fria. Do seu amigo,
Milton

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também