Começo abrindo um parêntesis, para me referir a uma reclamação bem-humorada do nosso amigo comum, o escritor Hélder Moura, que me disse eu ter abandonado o coimbrão, para abraçar o conimbrigense. Estou apenas sendo fiel a esta milenar cidade, de origem romana, Conímbriga, cujas ruínas se encontram em Condeixa-a-velha, a 18 km de onde nos encontramos.
Coimbra, a famosa cidade, onde estamos instalados, é um charme. Vive-se a história a cada ponto, meu amigo, pisando e repisando o chão já palmilhado in illo tempore por Celtas, Iberos, Romanos, Visigodos e Mouros.
O núcleo histórico daquela que foi a primeira capital do Portugal nascente é relativamente pequeno, podendo ser percorrido a pé, por quem se disponha a enfrentar as ladeiras, as ruelas estreitas, as escadarias, e o calçamento várias vezes centenário, que exige muito da energia do caminhante, além de uma disputa constante com os carros, tendo em vista as calçadas mínimas. No extremo, é quase impossível ser romântico, em algumas ocasiões, porque muitas calçadas não comportam um casal de mãos dadas...
Sim, meu amigo, é cidade para se caminhar, desde a beira do Mondego, na Baixa, onde a cidade nasceu, até o topo da íngreme colina, onde se situa e se abriga como uma arx cintada, a Universitas Conimbrigensis, protegida pela Porta Férrea e cingida por escarpas, em uma de suas extremidades, fundada em 1290, por D. Dinis, instituição que projetou a Urbs para o Orbis.
Sei que o amigo iria gostar da velha Coimbra pelo grande apelo cultural, literário e sedutor. Pelos recantos poéticos de seus jardins — Jardim Botânico, Penedo da Saudade, Jardim das Sereias, Parque do Mondego —, cuja síntese se encontra perpetuada na Quinta das Lágrimas, abrigo do mito maior do efêmero amor de D. Pedro e D. Inês de Castro, eternizado por Camões, no Canto III de Os Lusíadas.
Fechemos essa pequena digressão, para adentrarmos o assunto principal. Para o tamanho da cidade, Coimbra tem muitas livrarias. Livrarias mesmo, na acepção da palavra, com um estoque respeitável: até agora, percorri quatro lojas da Bertrand, três da Almedina e uma da Imprensa Nacional Casa da Moeda.
Sei do seu amor por livros e pela nossa língua, por extensão, pela casa natural dos livros, a biblioteca. Aqui, temos de sobra. Além da Biblioteca Geral da Universidade, há uma excelente na Faculdade de Letras, outra no Instituto de Letras Clássicas, e, pelo menos três no Seminário Maior da Sagrada Família, onde estou hospedado, sendo uma delas especializada em obras até o século XVIII. Nela se encontra a primeira edição comentada de Os Lusíadas, em dois volumes, datada de 1638-1639, da autoria de Manuel de Faria y Sousa.
Assim que chegamos aqui, meu amigo, na primeira oportunidade, fomos a uma livraria, onde Alcione e eu compramos nossos presentes de Natal. Eu lhe dei uma edição bilíngue da lírica grega — Poesia grega, de Hesíodo a Teócrito —, tradução de Frederico Lourenço; ela me presenteou com um livro sobre a história da Língua Portuguesa — Assim nasceu uma língua (Lisboa, Guerra e Paz, 2019), de Fernando Venâncio. Um primor de livro sobre as origens do português vinculadas ao galego, uma das línguas atuais da Espanha, cuja separação se dá por volta de 1300, sobretudo, com a aquisição do belíssimo e sonoro /-ão/. É aí que você, Davi, entra na história.
O linguista experiente Fernando Venâncio põe ordem no caos e mostra atualização das trilhas originárias da nossa língua, que, saída do galego, tornou-se importante, enquanto aqueloutra parece ter estacionado, sem ter encontrado o caminho que a sua importância merece.
No estudo longo, de leitura, porém, agradável, sabendo seduzir o leitor, mesmo nos momentos em que precisa ser técnico, Fernando Venâncio não deixa de lado a ironia, nos comentários críticos que faz a quem se arvora no direito de aldrabar a língua, entregando-se voluptuosamente ao erro, buscando, a todo o tempo, ser o bedel da língua aprisionando-a, muitas vezes, a uma gramatiquice sem sentido, com listas de “erros” que funcionam como “mero catálogo de proibições” (Assim nasceu uma língua, p. 267). Estes esquecem-se de que a língua é um sistema que necessita da sua realização como linguagem, para poder enriquecer-se. E a linguagem, tendo no uso a sua sustentação, é a criação dentro das possibilidades, uma errância, às vezes, sempre permitida pelo sistema. Há uma certa estesia no cultivo da língua, em que o desvio da norma aparece, não para aviltá-la, mas para cultuar a aprendizagem, substância da vida.
Fernando Venâncio tem a consciência do quanto a língua se faz flexível, sonora, harmoniosa e, sobretudo, viva na fala do utente, por isso a sua crítica aos que, lhes faltando o conhecimento do funcionamento da língua, se arvoram em seus inflexíveis guardiães, apontando erros que não podem e não devem ser repetidos, desconsiderando as situações diversas, em que o que se chama de erro é mais aceitável do que o que se consagrou como acerto. Ressalve-se, no entanto, que “as dinâmicas dos idiomas não se compadecem com atitudes voluntaristas, ideológicas” (idem, p. 291). Podemos afirmar, Davi, que a língua não é uma aventura sem roteiro, ela se faz ao se realizar na fala, mas só admite o que o seu complexo sistema valida e guarda. É evidente, meu amigo, que em muitos momentos o falar culto se impõe, de tal modo que é melhor saber usá-lo e não querer, do que não querer e não saber.
Devemos atentar para o fato de que as línguas, quaisquer que sejam elas, auxiliam-se da musicalidade para se realizar.Observe, por exemplo, Davi, que muitas pessoas se confundem no emprego de esse/este e seus pares, assim como se confundem na utilização de onde/aonde. Há regras práticas e fáceis para determinar qual deve ser o uso ditado pela gramática. No entanto, com a natural evolução da língua, é de se esperar que se consagre o uso de esse e de aonde, tendo em vista que, maior do que a gramática normativa, existe a gramática interna da língua, que vai moldando, pouco a pouco, a maneira de a língua se realizar como linguagem. Veja, meu querido amigo, como o nosso grande Noel Rosa, que reputo o maior compositor de nossa música popular, encara o uso de onde/aonde, em seu samba Eu vou pra Vila:
Na Pavuna tem turuna
Na Gamboa gente boa
Eu vou pra Vila
Aonde o samba é da coroa.
.......
A polícia em toda a zona
Proibiu a batucada
Eu vou pra Vila
Onde a polícia é camarada.
Vemos que a construção sintática é a mesma, decorrente de um movimento para algum lugar, que a gramática normativa aponta como um adjunto de lugar para onde, mas, na realidade sendo um acusativo de direção, como temos em latim: “Eu vou para a Vila” (Eo Villam), em seguida, vem um adjunto de lugar onde, o emprego, pois, deveria ser “onde o samba é da coroa”, como se encontra em “onde a polícia é camarada”. O poeta, no entanto, sabe que língua é música e ele está compondo para os ouvidos e não para os olhos, devendo, portanto, respeitar o ritmo e a musicalidade que a sua letra pede com o octossílabo perfeito. É por esse e outros motivos que devemos atentar para o fato de que as línguas, quaisquer que sejam elas, auxiliam-se da musicalidade para se realizar.
Pensar a língua, refletir sobre a sua capacidade de evoluir gradativamente é um dos modos de barrar as invencionices e os revisionismos incongruentes com a sua documentação, porque antes de se cristalizar como texto escrito, a língua se testa longamente na oralidade. Algumas formas se tornarão canônicas, as demais ficarão guardadas no sistema, podendo ser ou não revitalizadas, jamais apagadas, afinal o sistema de uma língua consiste na “criação de formas que só nela se instalam e, o mais das vezes, também só nela continuarão instaladas” (idem, p. 249). Não se espante o amigo se num futuro próximo o “tu fosse” vencer o “tu foste”, como o “esse” já venceu o “este, dificuldade articulatória que a língua inglesa, há muito tempo, já resolveu em palavras com “castle”.
Enfim, meu amigo, sendo hora de terminar esta missiva, recomendo a todos a leitura do livro de Fernando Venâncio, para que se possa perceber que o importante na língua, qualquer língua, como na vida, é a busca do caminho de criar e recriar-se.
Um grande abraço, desta Coimbra sempre bela que, finalmente, entra no verão.
Do seu amigo,
Milton