Fernando Lobo. Aqueles com mais idade e ligados às coisas da nossa música popular irão associar o nome ao jornalista, cronista, produto...

Campina Grande, a cidade inesquecível para um admirável compositor

fernando edu lobo campina grande
Fernando Lobo. Aqueles com mais idade e ligados às coisas da nossa música popular irão associar o nome ao jornalista, cronista, produtor e apresentador de programas na antiga TVE do Rio Janeiro. Outros lembrarão que Fernando Lobo é o pai de Edu Lobo, um dos mais brilhantes compositores da geração pós Bossa Nova, a de Chico, Caetano, Gil, Milton Nascimento, entre outros. Curiosamente, em razão da separação dos pais, Edu só viria a conhecer Fernando quando tinha 10 anos, como ele contou em depoimento ao escritor Eric Nepomuceno:

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Edu Lobo
“Eu lembro exatamente como foi. Minha mãe disse que precisava ir ao Centro da cidade comigo [...] Tínhamos acabado de atravessar a avenida Rio Branco quando um táxi parou na calçada. Ela apontou para o homem que saltou e vinha ao nosso encontro, e disse: ‘Esse aí é o seu pai’ [...] Não posso dizer que tenha sido um jeito bom de alguém encontrar o pai.”

Uma biografia musical, Edições de Janeiro, 2014

Fernando Lobo, além da sua atuação na imprensa, no rádio e na televisão, escreveu livros infantis e deixou uma magistral obra memorialística À mesa do Vilariño (Editora Record, 1991) na qual retratou o ambiente cultural do Rio de Janeiro nas décadas de 1950 e 1960 utilizando como fio condutor da narrativa os encontros de intelectuais e artistas que aconteciam em uma mesa do bar Vilariño localizado no centro da cidade.

Mesa do Vilariño: Vinícius de Moraes com o filho Pedro, ao centro, e Fernando Lobo, na direita, logo abaixo de Paulo Mendes Campos (em pé).
Dentre as diversas atividades que foram exercidas por Fernando Lobo, uma se destacou, a de notável compositor. Para o crítico musical Tárik de Sousa a obra de Fernando Lobo é “pequena mas influente”. Pelo menos quatro clássicos do samba-canção têm a sua assinatura: Chuvas de Verão (que teve uma regravação primorosa feita por Caetano Veloso), Siga (que João Gilberto registrou de forma magnífica), Preconceito (interpretada por Maria Bethania) e Saudade (parceria com Dorival Caymmi). No início da década de 1950, Fernando Lobo teve grande êxito como autor de músicas de carnaval: Nega Maluca (com Evaldo Ruy) e Zum-zum (com Paulo Soledade). Lobo também compôs vários frevos
O jovem Fernando Lobo
e fez algumas músicas em parceria com o também pernambucano Manezinho Araújo.

Fernando de Castro Lobo nasceu, em 1915, no Recife, mas viveu a sua infância e adolescência em Campina Grande, tendo retornado para Pernambuco para fazer o curso secundário e depois ingressar na Faculdade de Direito. Com o diploma de advogado na mão se mudou para o Rio de Janeiro, mas nunca exerceu a profissão, passando a trabalhar na imprensa e no rádio. Morou alguns anos nos Estados Unidos e, de volta para o Brasil, no início dos anos 1950 já era considerado um dos principais nomes da vida boêmia do Rio em uma reportagem que o colocava ao lado de outros expoentes das noites cariocas, como os cronistas Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria e figuras do mundo musical como Ary Barroso, Aracy de Almeida, Silvio Caldas e outros. Como Fernando Lobo sempre rememorava o tempo em que viveu na cidade paraibana, a matéria o considerava como sendo “de Campina Grande, naturalizado pernambucano”.

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Os boêmios famosos do Rio – Manchete, 20.12.1952 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional
Sempre nas suas conversas e nos seus textos Fernando Lobo inseria fatos e episódios de Campina Grande, o que levou o seu amigo Rubem Braga a escrever em uma crônica que ele teria nascido em Campina e estudado “no colégio do Ten. Alfredo”, um tradicional educandário da cidade. Em uma coluna que manteve na revista Manchete, Pelas esquinas da noite, Lobo relembrou em uma das suas crônicas a sua infância em Campina Grande quando a energia elétrica da Usina de Paulo Afonso ainda não havia chegado à cidade:

“Campina Grande era uma cidade escura no meu tempo de menino. Tendo ganho o sobrenome que queria dizer coisa vasta, era apenas um lugarejo quando a vi pela primeira vez. Depois foi crescendo como um pão de ló em bom forno e o motorzinho que dava energia para a cidade, foi ficando pequeno, cansado e sem força para fazê-la clara como o dia durante a noite. As luzes minguavam e dias e dias a gente vivia no escuro, gastando velas ou candieiros de querosene. Então falava-se que a noite sem luz era traiçoeira [...]"
Manchete, 23.05.1953
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Campina Grande, na década de 1930 ▪ Fonte: MLivre
A cidade reverenciada por Fernando Lobo, que surgiu como parada e pousada das primitivas tropas de burros que vinham do sertão “trazendo seus fardos de pele e algodão”, como descreve a canção Tropeiros da Borborema, o seu hino não oficial, sempre foi a Canaã de leais forasteiros como se canta no hino oficial. E essa identificação dos “leais forasteiros” com o lugar é tão forte que as letras, tanto a de “Tropeiros da Borborema” como a do hino oficial, foram escritas por dois campinenses adotivos, os cearenses Raimundo Asfora e Fernando Silveira.

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Campina Grande, na década de 1950 ▪ Fonte: IBGE
A Campina Grande que despertou, durante toda a sua vida, recordações indeléveis em Fernando Lobo nunca distinguiu, desde os primeiros tropeiros que se fixaram no local que viria a ser a antiga Vila Nova da Rainha, os que nela nasceram dos que foram por ela adotados. Por isso, os “leais forasteiros” se incorporam de tal forma à cidade que dela não podem ser dissociados, como foi o caso do médico Raiff Ramalho, meu tio, um daqueles que a cidade adotou e que Gonzaga Rodrigues em uma velha crônica escreveu que “a ideia de chegar a Campina nunca foi dissociada da de encontrar Raiff [...] a Campina Grande que eu sabia era a que ele me informava [...] Quando não o via, perdia a viagem”.

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Em seu livro de memórias À mesa do Vilariño Fernando Lobo descreve quando deixou Campina Grande para ir para o Recife fazer o curso secundário e depois ingressar na Faculdade de Direito:

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“Não sentia o frio gostoso da cidade deixada, mas o calor do Recife incendiando o meu olhar. Jamais iria amar a Recife – onde nasci e de onde fui embora cedo – tanto quanto Campina Grande a cidadezinha onde plantei meus sonhos [...] Foi em Campina Grande que inventei histórias que começavam na estação de trem [...] Em Recife, o trem não importava, ninguém fazia caso das suas idas e voltas. Para nós, da cidadezinha, o trem trazia seiva forte: nos entregava cartas, jornais, caixeiros-viajantes que à noite sentavam na calçada do Hotel Centenário e contavam histórias da grande cidade.
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Depois, estes caixeiros abriam suas grandes malas e levavam seus mostruários para enfeitar as vitrines da Casa Iracema”

Fernando Lobo continua o seu relato:

“Quando desembarquei no Recife, vindo de Campina Grande, haveria de provar o gosto das horas cinzentas [...] Recife era meus estudos, e Campina Grande era a liberdade, o voo das férias [...]

Acabara de aprender com o Tenente Alfredo, dono do Instituto Pedagógico de Campina Grande, todas as lições, do beabá aos primeiros problemas de álgebra. Possuía boa noção de inglês, ensinado pelo Prof. Santiago, um pastor protestante que arrancou o dente da frente para pronunciar melhor o the. Monsenhor Barreto ensinava francês, e, tendo largado a batina para fugir com uma de suas ovelhas, encontrou abrigo no colégio do tenente que era protestante [...] ‘O menino sabe muito’, foi o que ouvi dizer depois das primeiras aulas no colégio novo”.

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Instituto Pedagógico de Campina Grande ▪ Fonte: Retalhos Históricos de CG

E foi em Campina Grande que nasceu a paixão de Fernando Lobo pela música e onde ele teve as primeiras lições de piano com o pai do compositor pernambucano Capiba, cuja família morava na cidade:

“Vem de longe esse amor indestrutível, dos tempos de menino, quando minha mãe tocava bandolim e juntava gente em casa num sarau de muita música [...] Eu aprendia piano com o professor Capiba, mas confesso que odiava suas aulas e obrigações. Só depois que elegi o violino meu instrumento foi que me dediquei com interesse e liberdade à música”
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Capiba ▪ 1904—1997
Para Fernando Lobo as reminiscências de Campina Grande eram muitas: “Lembro de um homem que apareceu em Campina e curava todas as mazelas com injeções de cuspe [...] Muita gente ficou boa, muita gente morreu”. Episódios ocorridos no lugar ficaram na sua memória e até marcas da cidade permaneceram encravadas no seu corpo como “uma cicatriz que ganhei numa queda no Cine Apolo em Campina”. E, nas próprias palavras do compositor: “as minhas melhores lembranças datam de Campina Grande, onde o sonho era uma realidade que abusava gostosamente da minha inocência”.

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Fernando de Castro Lobo ▪ Fonte: TVE
Em setembro de 1971, a Câmara Municipal de Campina Grande, por propositura do vereador Argemiro de Figueiredo Filho, concedeu a Fernando Lobo o título de cidadão campinense. Na solenidade, o compositor discursou agradecendo a honraria recebida e expressou a sua ligação com a cidade:

“No dia que saí daqui, levado, talvez, pelos ensinamentos do Professor Alfredo Dantas, que, abrindo a geografia, me apontava outros mundos, eu queria ver estes mundos; queria sair e buscar, lá fora, quem sabe, uma estrela que representasse a glória, a fama, o prestígio, para depois voltar aqui e mostrar a vocês: eu fiz e tenho nas mãos esta estrela [...]

E caminhei [...] E cada vez que me alongava, e cada vez que mais me distanciava da minha terra, cada vez mais me afastava do meu território, cada vez essa estrela mais se afastava de mim. E só agora neste dia de hoje, nestas horas em que, trinta e um anos depois, eu volto, é que venho saber com certeza e com segurança que essa estrela não estava lá, estava aqui”

Fernando Lobo faleceu, em dezembro de 1996, aos 81 anos, no Rio de Janeiro.

Nota do autor Este texto é uma homenagem aos “leais forasteiros” de Campina Grande, como o foram meus pais, tios e tias, que se tornaram tão campinenses como eu.

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  1. Anônimo9/6/24 11:47

    Belíssima história de CG e Fernando Lobo.

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  2. Anônimo9/6/24 12:46

    Saudações! Me chamo Alisson Teles Cavalcanti. Belíssimo texto e brilhante resgate da história de minha cidade! Permita-me apenas uma pequeníssima mas importante correção: O hino oficial de Campina Grande foi composto por Antônio Guimarães (música) e Fernando Silveira (letra). Raimundo Asfora é compositor da letra do "hino informal", Tropeiros da Borborema, juntamente com Rosil Cavalcanti (música). Parabéns pelo trabalho!!!!

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  3. Anônimo9/6/24 13:15

    Excelente relato historico que me aoroximou ainda mais de Campina e sua gente. Morei em Campina 20 anos . Sou cidadao Campinense autorgado pela Camara de Vereadores. Parabens por trabalho. Grato Mozart Santis

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  4. Anônimo9/6/24 16:08

    Gratidão por compartilhar. Sou campinense, porém conheço quase nada da minha cidade. Saí de lá com 14 anos.

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  5. Anônimo9/6/24 22:13

    Parabéns, amei saber dessa ligação de amor de Fernando Lobo, com Campina Grande.

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