São três grandes monólitos entre os limites que separam São Bento do Sapucaí e Campos do Jordão, lá no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. Um ao lado do outro. O maior deles, o que fica no meio, dependendo do ângulo em que é visualizado apresenta o formato de um baú; daí, segundo alguns, a denominação: Pedra do Baú. De um dos lados dessa pedra está a Bauzinho, por ser menor e ter formato parecido e da outra banda, a menor das três, que é a Ana Chata e não sei quem foi essa Ana que mereceu tal “homenagem”. Há lendas de amor e tragédias em torno desse nome e seu respectivo apodo, mas não vem ao caso nestas linhas.
Mas aqui vou ficar mesmo com a “chefa” delas, a Pedra do Baú. Nem imaginam como esse enorme pedregulho entrou em minha vida e como tem habitado meus dias. Hoje é um ponto turístico muito visitado, tanto dos que se hospedam numa como noutra dessas duas cidades. O acesso foi facilitado de ambos os lados com trilhas, pontos de apoio e outras tantas maneiras de tirar algum dinheiro das almas peregrinas que visitam o local. Nos meus tempos de menino, nada disso havia, chegar até lá tínhamos que encarar mata fechada de araucária e pinho-bravo com a agravante de poder se deparar com uma onça, que àquela época esse bicho andejava por ali. Lá em cima da pedra registra-se a altitude de 1965 metros e lá do topo até embaixo, no sopé, de onde essa massa de granito rasga a Mantiqueira temos algo entre 300 e 400 metros dependendo de onde se faz tal aferição.
Minhas origens jordanenses fazem cócegas nessas minhas veleidades de escritor e teimam em tirar de mim um pouco da história desse lugar, antes que eu me arrisque no que propriamente queria dizer. Foi escalada pela primeira vez em 1940 pelos irmãos Cortez, que na verdade se chamavam João e Antônio Tavares de Souza. Anos depois um empresário, Luís Dumont Villares, patrocinou a colocação de grampos fixados à rocha para facilitar sua escalada. Teria sido esse empresário também quem financiara a construção de um pequeno abrigo lá em cima. Devido à ação predatória do bicho-homem, só restam alguns vestígios do alicerce dessa construção, nada mais.
Agora o que eu queria contar.
A Pedra do Baú, sempre exerceu certo fascínio nas almas dos jordanenses. Como não podia deixar de ser, em minha família também. Muitas lendas, muitas histórias de destemor, de bravura de gente que enfrentou até onça antes de se arriscar naquele alpinismo rudimentar.
Para meu avô, homem que era homem de verdade tinha que enfrentar e escalar aquele paredão. Se não o fizesse... Bem, não poderia ser considerado homem com agá maiusculo. Seus filhos, Augusto (meu pai), Tasso e Orlando receberam seus diplomas de macheza. Escalaram a pedra. Faltavam os netos. Não sei como está a situação nesse quesito dos meus quatro primos por parte de pai. Vou procurar saber se tiveram sua formatura. Como já faz mais de quarenta anos que meu avô foi falar com Deus, meus filhos e os deles (primos) estão dispensados desse vestibular. Além dessa cobrança ter perdido sua força, hoje está fácil subir na Pedra. Perdeu a graça de outrora. Bem, e eu?
Recebi meu diploma já com alguns anos de atraso. Foi no último dia do ano de 1977. Eu já quase trintão, pai de duas meninas, fui posto à prova. Saímos cedinho: meu pai, meu tio Tasso, meu avô e eu. De carro até onde havia estrada a uns dez quilômetros do sopé. Depois uma trilha úmida e escura entre as araucárias. Chegamos. Meu avô que já havia apagado setenta e sete velinhas em seu último bolo de aniversário, ficou no aguardo. Já fizera aquilo algumas vezes e os perigos e desafios da subida já estavam além de suas possibilidades.
Meu pai à frente da trinca. Segura aqui, põe o pé ali, cuidado que aqui está liso, melhor não olhar para baixo... Nem sei quanto tempo levamos, mas chegamos. A visão lá de cima é algo esplendoroso, inesquecível. Aqui, presos ao nosso cotidiano, nem desconfiamos como é bonito esse mundão de Deus. Como é!
Mas tínhamos que voltar, e na volta vir de ré. Aí a coisa quase que pegou. Em um trecho eu tinha que fazer um movimento com meu braço esquerdo, justamente aquele que a ortopedia não recomendava, pois costumava terminar em luxação. Empaquei. Vai chamar os bombeiros que daqui não saio. Não houve jeito, tive que arriscar e o braço não desencaixou. Ufa!
Foi assim. À noite um abraço de meu avô, lhano e com fumos de chancela. Como se ele estivesse entregando meu diploma de homem, de agá maiusculo, como ele gostava de dizer e me colocado de um dos dois lados em que ele dividiu a humanidade: a dos homens que escalaram a Pedra do Baú.