De qualquer ponto da propriedade, sua efígie nebulosa, envolta na cerração do amanhecer, sobressaia pontiaguda do céu lavado do sertão...

A Serra da Engabelada

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De qualquer ponto da propriedade, sua efígie nebulosa, envolta na cerração do amanhecer, sobressaia pontiaguda do céu lavado do sertão. O que não se constituía em novidade para o vulto que a observava de pé, roupas cor da bruma, voejando levemente, pernas afastadas, cabeça inclinada em obséquio, mãos nos quadris magros, cuja severa escoliose que lhe desenquadrava a silhueta marcava doloroso contraste com a perfeição do cenário.

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Serra da Engabelada (PB)
Egberto Araújo
Fixava-se todos os dias, longamente, naquela justeza celestial. A despeito de ser particularmente deslumbrante à franja alourada do alvorecer, aquilo tinha sobre si o mesmo impacto avassalador qualquer que fosse o momento da contemplação. No escuro ou no claro, era a mesma: serena, enigmática, imponente, majestática, distante; mas não indiferente para com ele. Via-se mesmo um ar de riso nas comissuras dos lábios graníticos, formados no pré cambriano, cujas bocas foram empilhadas judiciosamente, uma a uma ou de trambolhão, sabe-se lá, pelo elemento insondável, imensurável das convulsões pré-históricas, numa gaitada de milhões e milhões de anos.

Ria-se, sim, dele e da pequenez d’alma que assolava as gentes medrosas aqui da planície - ela que nada temia - nas noites varridas ruidosamente pelos causos fantasmagóricos que calcinavam a coragem dos homens, esbugalhavam os olhos das crianças, cobriam de mantilhas as cabeças trêmulas das mulheres e até os anciãos, que conheciam de cor e salteado as lendas assopradas pelo zéfiro, abafavam-se claustrofóbicos, suando embaixo dos cobertores pesados de inverno, desde o crepúsculo até as primícias dos galos nos terreiros.

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Serra da Engabelada (PB) Egberto Araújo
Gargalhava com gosto, às vezes, salivando de deboche, sobretudo da obsessão daquele tipo oblíquo e insignificante, uma linha mal traçada sobre um papel amassado, metido a pensador - vejam só -, o qual, na sua tibieza, ansiava todas as manhãs por escalá-la, vencê-la, atravessá-la, decifrá-la, desdobrá-la, encontrá-la, possuí-la, fosse o que fosse que o aproximasse da sua carranca duríssima, atrevida, pedregosa. Desejava humanizá-la, trazê-la para perto de si, aplacar seu sofrimento de ínfimo animal, seus mais elementares instintos, com a atraente ternura abúlica da pedra, jamais manifestada para outrem, na mais estapafúrdia e egoísta das utopias.

Porém, eis que constava no aranzel do grupo, dependurado nos portais das casas à guisa de édito, que ninguém jamais havia logrado chegar sequer ao sopé daquela realeza e, portanto, que nenhum néscio intentasse fazê-lo. Era certo, e todos assim asseveravam sem a menor relutância, que a
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Prefeitura do Congo PB
monstruosa montanha deslocava-se no vácuo, flutuando sem peso pelos gases miraculosos da atmosfera, toda a vez que alguém se aproximava, mantendo uma equidistância perfeita entre si e o desditoso andarilho. Permitia ser contemplada, admirada, temida. Contudo, jamais pisada, violada; uma deusa virgem, em suma, como Atena ou Héstia. Assim, por via de consequência, fazia jus ao nome brejeiro, peralta, que se lhe fora atribuído desde antanho: Serra da Engabelada. E a trilha imaginária, um Gólgota atapetado de caveiras, testemunhava a sina dos que ousavam fruir da proximidade daquele corpo inanimado, mas vivo, frígido, todavia tépido nas suas íntimas camadas geológicas, no mais eloquente oximoro que se tem notícia.

Ocorre que, naquele dia de poucas nuvens, em que mirava com uma vista só o anil do firmamento, o caboclo como que evocou o destemor espartano, antigo, adormecido no recôndito de cada célula do seu corpo maltratado. Ato contínuo, resolveu-se, sem testemunhas, exceto ela, a enfrentar a inépcia dos velhos, as bisbilhotices das comadres, os medos dos meninos e a covardia dos homens.

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Serra da Engabelada (PB)Sergio Falcetti
Entrou na choça, aliviou-se, trocou as sandálias pelas alpercatas reforçadas de palmilhar, engoliu um naco do cuscuz que mal o nutria desde moleque, empanou outro pedaço, borbulhou um cantil na quartinha, afivelou a matula rota e jogou-a nos ombros. Por derradeiro, enfiou pelas abas o chapéu de palha e transpôs o umbral da saída. Não estava calmo, tampouco excitado. Dominava-o um certo transe, de tal modo que até os incômodos lombares, que lhe faziam um Quasímodo empenado, pareciam arrefecidos. Ora, ninguém se arruma para encontrar a má sorte, não se permitiria engabelar, pensou rapidamente. Com passos lentos, mas sem hesitação, vadeou a trempe de ferro colocada sobre a cerca e adentrou na servidão de passagem que o levaria à rodagem; quando, então, seu caminhar indolente levantou bocados de pó, até perder-se no horizonte difuso do meio-dia.

Jamais retornou ao vilarejo. Entrementes, uma nova boca de pedra, retorcida de fina ironia, refulgia no topo da superfície metálica da Serra.

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