A linguagem neutra (LN) é uma inovação linguística preconizada, a meu ver, pela comunidade LGBTQIA+ (doravante LGBT), que se sentiu equivocadamente estigmatizada pelas normas da língua portuguesa ensinada nas escolas (LP), em que o masculino prevalece nas regras de concordância nominal, o que caracterizaria uma forma de machismo inaceitável.
Os que constituem a comunidade LGBT acreditam que a LN desfaz esse pretenso machismo da LP, por isso propõem que uma expressão como, por exemplo, “todos os alunos”, da LP, seja convertida em “todes es alunes”, em que o masculino e o feminino se fundem, no mesmo enunciado, sem levar em conta o fato gramatical relevante de que o masculino não é necessariamente indicação de sexo, mas uma categoria gramatical genérica que pode incluir muitas vezes o sexo feminino.
Não à toa o neutro latino acresceu ao gênero masculino na LP. Os gramáticos tradicionais creio que ajudaram na formulação da LN, ao falar em masculino e feminino na parte referente ao estudo dos gêneros gramaticais. Acontece que o masculino não deveria ser considerado gênero, mas ausência de gênero. Assim como o singular se revela pela ausência da marca de plural {-s} assim também o masculino se revela pela ausência da marca específica de feminino {-a}. Ora, Deus é masculino porque não tem o {-a} do feminino, assim como prato é singular por não ter o {-s} que marca o plural. Dessa forma, uma afirmação universal como “Todo homem é mortal” inclui necessariamente a mulher, já que “homem”, aí, não designa nenhuma pessoa específica, mas o próprio gênero humano. Assim a frase de Euclides da Cunha, por exemplo, em Os Sertões, “O sertanejo é antes de tudo um forte” inclui necessariamente a sertaneja.
Os autores de gramáticas normativas deveriam falar não em masculino e feminino, mas em gênero não marcado e gênero marcado, considerando o masculino como ausência de gênero ou o próprio gênero neutro. Não é à toa que pronomes como isto, aquilo, tudo, alguém, ninguém, quem, nada e quejandos fazem a concordância no masculino, exatamente porque não designam gênero nenhum: “Quem fez isso é bobo”, “Isso é bom”, “Alguém é favorecido pela lei”, etc.
Os argumentos dos defensores da LN se baseiam no fato de que, se numa sala há um milhão de mulheres e um único homem, a concordância nominal se faz no masculino. Se uma pessoa quer agredir um homem, é a mãe dele que ela xinga; além disso, há nomes que são elogios para o homem e agressões à mulher: a um homem se pode chamar de touro ou de garanhão sem problemas, mas chamar a mulher de vaca ou de égua é ofendê-la.
À primeira vista esses argumentos parecem ter fundamento. Adriano da Gama Kury, gramático excelente, com quem mantive correspondência durante alguns anos, enviou-me seu belíssimo livro Para falar e escrever melhor o português (2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 192-199), em que chega a elogiar e a recomendar o livro A mulher na língua do povo, de Eliane Vasconcelos Leitão, que “estuda os vários casos em que as regras gramaticais e as palavras contribuem para fazer da mulher um ‘ser humano anulado’, segundo informa o Autor.
Parece-me (não li o livro elogiado por Adriano da Gama Kury) que Eliane Vasconcelos Leitão (como posteriormente a comunidade LGBT) se teria esquecido de que a língua se caracteriza pelos instrumentos gramaticais, como flexões nominais e verbais, artigos, preposições e conjunções, por exemplo. O vocabulário, isto é, as palavras reais, não caracterizam a língua. É por isso que o inglês é considerado língua germânica e não latina, apesar de ter uma quantidade significativa de palavras latinas no seu léxico. Da mesma forma, o romeno é considerado língua latina, apesar da grande quantidade de palavras eslavas em seu dicionário. É basicamente o vocabulário o que distingue o português do Brasil do português de Portugal, ou o português brasileiro do morro do português brasileiro do asfalto.
Ninguém deixaria de reconhecer como legitimamente portuguesa uma frase como “O office-boy, com uma pizza de mozarela, flertou com as garçonetes no hall do drive-in”, em que não existe uma única palavra portuguesa (Office-boy, hall e drive-in são palavras inglesas, como a raiz de “flertou”; pizza e mozarela são nomes italianos; garçonete é nome francês. O que caracteriza a frase como portuguesa são os instrumentos gramaticais: os artigos, as preposições, a flexão verbal, o número, o gênero.)
Um falante pode inventar um substantivo novo ou um verbo novo, mas não poderá inventar um gênero diferente nem uma conjugação diferente, porque é a gramática que faz a língua e não o dicionário. Para inventar palavras, não é necessário utilizar os recursos de formação vocabular que a língua põe à disposição dos falantes, como sufixos e prefixos. Basta respeitar os padrões fonológicos da língua. Ao inventar o “imexível”, o ministro Magri, do Governo Collor, utilizou recursos existentes na língua, e o resultado foi perfeitamente compreensível, aceitável e de acordo com outras formações lexicais já existentes, como “ilegível”, por exemplo. Mas, ao inventar “hiputrélico”, em Tutameia, Guimarães Rosa só respeitou os padrões silábicos e fonológicos da língua, o que deu uma configuração portuguesa à palavra, mas nenhum sentido, uma vez que nenhum falante poderá saber o que essa palavra significa, a menos que o próprio autor o diga.
Assim, quando utiliza um termo agressivo para a mulher mas elogiativo para o homem, o falante é que está sendo machista, e não a língua, porque a escolha das palavras é exclusivamente responsabilidade sua. Mas, quando usa o feminino, o plural, ou conjuga um verbo, a responsabilidade é da língua, porque é a língua e não o falante que determina o gênero ou a flexão verbal. O masculino, portanto, deveria chamar-se “neutro” ou “gênero não-marcado”, por oposição ao feminino, que é gênero marcado. Por isso, se há muitas mulheres e apenas um homem num lugar, a concordância no masculino apenas assinala que não se está especificando gênero nenhum, que não se está privilegiando ninguém.
Com relação a nomes que são elogios para o homem e ofensas para a mulher, como pistoleiro/pistoleira, homem público/mulher pública, touro/vaca, aventureiro/aventureira, cão (melhor amigo do homem) / cadela (prostituta), etc., não há neles nada que permita concluir que a língua seja machista, porque se trata de vocábulos, de itens lexicais, de palavras de livre escolha do falante, sem imposição da língua. Se o falante tem o direito de inventar uma palavra (falso lexema), como fez Guimarães Rosa com o seu “hiputrélico”, ele não tem o direito de inventar um gênero novo, um plural diferente ou uma flexão verbal própria. Os instrumentos gramaticais são impostos ao falante, mas o vocabulário, não. Assim, não é a língua que é machista, mas o falante, quando usa nomes elogiativos para o homem e ofensivos para a mulher.
Podemos concluir, portanto, que a LN é fruto da incompreensão da essência da LP, um equívoco gerado por um preconceito não da língua, mas dos que propõem uma nova LN, desconhecendo que a LP é uma LN mais atraente e constitucionalmente o único idioma oficial do Brasil.