O homem primitivo não usava pente. Certamente não lhe ocorria a hipótese de que os fios desgrenhados na sua cabeça poderiam se ajustar à caixa craniana de um modo, digamos, mais decente e estético. Quando isso aconteceu (com a inevitável influência da mulher, claro), ele notou que passar o minúsculo objeto pelos cabelos também propiciava um ganho adicional: retirar parte dos piolhos que lhe infestavam o couro cabeludo.
Cottonbro/Daniel Dan
A coisa chegou a tal ponto que estar despenteado, ou mesmo mal penteado, virou uma marca de desrespeito social. Assim como compomos as vestes, precisamos dar aos pelos da cabeça uma aparência decente a fim de melhor transitar em sociedade. Muito da rejeição aos jovens nos anos 1960 veio de eles – na tentativa de imitar os Beatles, por exemplo – deixarem os cabelos crescer e se manterem despenteados (é bom lembrar que o conjunto inglês ostentava um desalinho estratégico, pois tinha a rebeldia como imagem).
Nada tenho contra os pentes; eles é que não se dão bem comigo. Tanto que, na primeira oportunidade, costumam escapar da minha vista e sobretudo do meu bolso. Não conto as vezes em que isso ocorreu, e o pior: nunca descobri “como” nem “por que” isso ocorre. O fato é que um belo dia
Denise e Chico Viana
Acervo do autor
Acervo do autor
Esse tipo de acontecimento já foi motivo de conflitos aqui em casa. Para preservar a harmonia conjugal, minha mulher passou a comprar cartelas com vários pentes. Esperava com isso compensar a minha tendência a perdê-los. Mas tudo fica em paz só por um tempo, e invariavelmente chega o momento em que se repete o fenômeno: meto as mãos nos bolsos e não consigo encontrar o pequeno artefato. Envergonhado, peço um empréstimo a ela, que aproveita a ocasião para criticar o meu descuido. De novo?! Como pode uma pessoa ser tão desatenta?! Deve ter a cabeça no mundo da lua!
Não, minha cabeça está aqui mesmo, embora despenteada. O problema é que ainda não se descobriu um meio de guardar com segurança, e manter sempre ao nosso alcance, esse objeto minúsculo e esquivo com que nos habituamos a acomodar a rebelde pilosidade que se deposita sobre a nossa caixa craniana.
UP
Para aliviar o clima, prometo à mulher não mais perdê-los – mesmo sabendo que será difícil cumprir a promessa. Outras perdas haverá, e serei novamente objeto de ácidas repreensões. Consola-me saber que, se os procuro em bolsos vazios, é porque ainda preciso deles. Nem que seja para ajeitar os poucos fios que me ligam a um tempo no qual eu me orgulhava de uma vasta cabeleira. Esse pensamento me consola e até me encoraja a proclamar, na surdina: “Vão-se os pentes e fiquem (ainda que ralos) os cabelos!”.