Era tiro e queda, sábado, quatro da tarde começava o samba na casa do Ernesto. Zilda, rabicho de Ernesto há mais de quinze anos, era en...

Samba do Arnesto

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Era tiro e queda, sábado, quatro da tarde começava o samba na casa do Ernesto. Zilda, rabicho de Ernesto há mais de quinze anos, era encarregada “dos comes”. Os “bebes” ficavam por conta de cada um que aparecesse por lá. Feijoada igual a dela ainda estou para ver (ou comer) uma igual. Não tem nesse mundão de Deus.

Tinha a bossa da cozinha essa mulata sestrosa, cheia dos dengos. Rainha dos temperos. Vez ou outra mudava o cardápio: uma rabada ou costela de boi ao bafo. Mas o forte mesmo era quando o fogão à lenha
fumegava dando fervura ao caldeirão com orelha, rabo e pé de porco, mais o paio, carne de charque, calabresa e outros ingredientes engrossando o caldo de feijão preto. Tudo acompanhado de arroz branco soltinho. Couve, refogada no alho e depois laranja para dar uma controlada no colesterol. Tudo isso regado àquela “loira suada” na temperatura ideal.

Depois do rega-bofe, vinha cantoria e então, é bom dizer quem eram os componentes daquela orquestra sabática. No violão de sete cordas, Tiãozinho Perna Torta; no vilão e vocal, Antenor; no cavaco, Beto Macaco; o bandolim ficava por conta de Silveirinha; o acordeão era com Bernadete; reco-reco ficava na responsabilidade de Cidinha de Dona Penha, já o pandeiro levava uns tapas de mestre Afonso. Além desses, o vozeirão do anfitrião Ernesto com Zilda fazendo a segunda voz com Antenor. A banda era essa, mas sempre havia voluntários para fazer algum acréscimo à cantoria quando a animação escapava dos copos e ia para a garganta dos que frequentavam aquele pagode.

Quem aparecia sempre depois do rega-bofe, com a cantoria já animada e cerveja e cachaça rolando soltas, era o sargento Praxedes, um militar aposentado de nossa gloriosa Aeronáutica. Mulato grandão, barriga já dando sinal de vida, nosso militar chegava sempre, como se diz, chegando com aquele vozerão muito bom para discursar e chamar atenção se usado para oratória, mas para cantar... Enfim, Praxedes era desafinado que só, mas depois de umas três talagadas de cangibrina, se achava dono daquela tessitura vocal capaz de atingir notas lá em cima da escala. Mas na verdade era um desastre na cantoria. No coro fugia do tom, desafinava e obrigava mestre Ernesto a passar-lhe um pito:

⏤ Assim não dá, Praxedes. Ou pega o tom, ou pega o beco.

Com aquele tamanho todo, Praxedes não fazia nenhuma coisa nem outras, continuava no coro, todo animado (ele e não o coral). Isso quando não tentava “carreira solo”.

⏤ Tiãozinho, dá um ré maior aí que quero cantar O mundo é um moinho, do Cartola.

Tiãozinho, a contra gosto dava o tom, Beto Macaco, mais sem vontade ainda, puxava as primeiras notas no cavaco e Praxedes já ia, com emoção e lágrimas nos olhos, soltando seus do-ré-mis: Ainda é cedo amor/ Mal começaste a conhecer a vida/Já anuncias a hora da partida/ Sem saber mesmo o rumo que irás tomar...

Sem saber que rumo tomar ficavam os instrumentistas que não acompanhavam, perseguiam, aquele rascunho de cantor.

Não dá para dizer como suportavam o corpulento militar naquela confraria. Mas o destino, sabem como é. Num sábado, sem ninguém esperar, nosso sargento-cantor aparece mais cedo. Veio para feijoada e junto, para não fugir às regras da
confraria, trouxe um engrado de cerveja. Desafinado, sim; pão-duro, jamais.

Seu apetite aliado às habilidades de Dona Zilda, fez nosso sargento enfiar os beiços naquela feijoada da melhor qualidade e durante esse ato gastronômico entornou umas três garrafas goela abaixo. E o que aconteceu? Pouco antes de começarem a cantoria Praxedes começou a passar mal. Ficou cinza, azul, amarelo, sem cor alguma. Com muita dificuldade pediu ajuda e o levaram para a sala e ali deitaram o pobre em um sofá. Bernadete comentou com Cida de Dona Penha.

⏤ Melhor deixar ele aí desse jeito. Se melhorar vai querer cantar.

⏤ É mesmo. Depois esse mal estar passa. Na hora de ir embora vai estar novinho em folha ⏤ confirmou Silveirinha.

Foi uma unanimidade: os donos casa, Tiãozinho, Antenor, Beto Macaco concordaram em deixar a criatura ali e foram começar o sarau. E assim foi, muito animados com as cervejas que Paxedes trouxera e mais outras de outra meia dúzia de comensais que apareceram naquela tarde. Colocaram as gargantas para funcionar. Cantaram e beberam sem ninguém para atrapalhar.

Fim da retreta, foram chamar Praxedes. Estava duro como um pau, mortinho da silva. Tomaram as providências e à noitinha chegou o rabecão do IML para levar o corpo. Bernadete ainda comentou: ⏤ Tadinho, lá no fundo era boa gente, mas vá cantar mal lá nos quintos dos infernos.


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