O trabalho personalizado que resulta na singular interpretação com que o regente de orquestra marca a obra que conduz vai muito além dos gestos a que assistimos durante a performance. A preparação na qual ele lapida e imprime à peça uma concepção particular tem início nos ensaios quando, ao conhecer os músicos, avalia potenciais individuais e coletivos para explorar os limites e objetivos de seus sentimentos musicais.
É razoável perceber que os espectadores comumente atribuem aos movimentos da batuta o que lhes parece mais importante na função do maestro. Mas não é. Assim fosse, um metrônomo de mesma estatura faria o papel de marcação rítmica puramente mecânica de uma regência.
Previamente cada obra é profunda e minuciosamente estudada pelos regentes que a entendem de maneira peculiar, tanto quanto nela sentem a essência congeminada por seus autores. Ainda que a partitura contenha toda a linguagem melódica e respectivas anotações do compositor, há nas páginas musicais um imenso universo criativo não explícito, e frequentemente ainda não perscrutado, descortinado. Daí não existir sequer uma sinfonia que possa ser executada duas vezes de igual maneira, embora com os mesmos instrumentistas, o mesmo regente e a mesma ambiência acústica. A música é viva como um rio que corre livre, incapaz de ser o mesmo no decurso de seu leito.
A riqueza composicional com que a arte da música é escrita, ao contar com diversos recursos tímbricos, variados tipos de sonoridade, de entrelaçamento melódico estruturado em frases que se harmonizam em vários níveis, vozes e formas distintos, justapostos em contraponto ou em planos lineares, é infinitamente grande. É isto que oferece ao maestro e aos intérpretes as ferramentas de que ele precisa para esculpir determinada ideia, à imagem do espírito do autor, do estilo e da época em que a música foi composta, fazendo com que ela se multiplique, se reproduza e se transcreva ilimitadamente em novas versões a manter obras e compositores vivificados em concepções inéditas.
Por vezes, regentes descobrem nas entrelinhas dos pentagramas detalhes e dizeres melódicos não claramente explícitos que até os autores não os tenham imaginado sob tais ângulos, e possa lhes dar caráter inovador capaz de conferir à música cores infinitamente criativas. Esta é a marca do intérprete, cujo valor se mede pela busca incessante de possibilidades metamórficas que a música invariavelmente oferece aos detentores de agudeza sensorial e talento para a divina arte.
Gestualmente falando, há maestros e solistas calmos, contidos, discretos, assim como os que extravasam nos movimentos corporais o que a emoção lhes provoca. Do ponto de vista estritamente musical, daquilo que se escuta, pouco importa a performance gestual. Que digam os que têm audição apurada, quando privados da visão, ao ouvir músicas gravadas ou ao vivo. O que lhes soa é o que de verdade importa.
Contudo é inevitável o entusiasmo experimentado por quem vê presencialmente regentes a conduzir óperas, concertos, cantatas e sinfonias em memoráveis interpretações marcadas não apenas pelo dom, pela capacidade, mas também pela intensidade do envolvimento corporal com a música, com a orquestra, com os músicos e a plateia.
Um clássico exemplo é o do regente finlandês Tarmo Peltokoski, de apenas 24 anos (!),a quem tivemos oportunidade de assistir, há poucos dias, na Noruega, à frente da Orquestra Filarmônica de Oslo. Entre ele e a música há notória e cristalina simbiose, seja auditiva, visual ou gestual, em que a aura de sentimentos voeja da partitura à orquestra, passeando, acariciando e sacolejando cada timbre, cada naipe, aos quais consegue expressar exatamente o que o comove, o que ele entende de tudo o que extraiu dos mais íntimos sentimentos do autor, muito além da partitura.
O que se observa em sua regência é o triunfante regozijo do resultado pronto, alcançado pela consubstanciação integral entre a história da obra, parâmetros conceituais e estilísticos, personalidade do compositor e a minuciosa grafia contida na escrita original, ora incorporados à alma interpretativa que lhe dá nova vida, nova roupagem, com silhueta inédita.
Ao estudar o que conduzirá, o regente se debruça nas partituras como quem lê e degusta atentamente um romance de seu escritor predileto, espelhando em sua imaginação os reflexos do que se passou na mente de quem o criou e assim experimenta nas próprias emoções a história que revive. Em cada frase, em cada diálogo descrito, em cada harmonia, é possível encontrar o que seja merecedor de destaque ou enfoque especial, que não se mostrou explícito na ideia e na execução original. Nisto reside um dos grandes valores do condutor: entrever na escrita musical nuances, detalhes, segredos, minudências, pormenores que em sua visão recebem inovadora feição e enriquecem particularmente o conjunto, seja em tessitura sinfônica, camerística ou coral. Além de, principalmente, fazer com que os instrumentistas assimilem ao longo dos ensaios a atmosfera em que as peças renascerão.
Um maestro como Tarmo Peltokoski sabe onde buscar nas entrelinhas minúcias ocultas e abstratas que talvez até estejam dentro de sua própria emoção, em segredos que se restringem a ele e ao espírito do compositor que incorpora. É nítida e comovente para o espectador a maneira como ele se lança na música ao soltar o corpo que dança e a alma que canta. Realmente impressiona!
Na inesquecível e inebriante noite de Oslo, o programa de autoria de dois grandes e dramáticos neo-românticos — um alemão e um russo — não poderia ter sido mais adequado à personalidade de um diretor de orquestra como Tarmo. As aberturas wagnerianas Tanhauser e Os Mestres Cantores de Nuremberg, o 2º Concerto para Piano e Orquestra de Prokofiev, com extasiante participação do pianista canadense de origem polonesa, Jan Lisiecki, e a Suite-Concerto O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss constituíram o idílico panorama pelo qual ele magnificamente flanou. Nos incisivos e precisos momentos de marcação, a batuta apontava para os naipes como uma “vara de condão” a encantar a plateia, a orquestra, e transmitir com extraordinária sensibilidade tudo o que conseguiu burilar ao extrair a mais pura natrita de partituras tão grandiloquentes. Era a música rediviva atravessando décadas para a instantaneidade de um ineditismo conduzido a ressuscitar obras admiráveis com o mesmo brilho de seu autor. Ainda que os talentos e a excelência da performance pairem cintilantes nos palcos musicais, o compositor merece ser sempre lembrado, honrado e reverenciado soberanamente acima de todo o espetáculo. Nada mais gratificante aos espíritos dos músicos, pois que se regozijam ao ver suas criações imortalizadas em novas técnicas de interpretação, em sonoridades e acústicas cada vez mais refinadas, quando também se sentem aplaudidos e cumprimentados.
Mesmo que a arte da regência e da interpretação musical celebrada pelo maestros, solistas e instrumentistas fundem-se em um só bloco durante a execução de grandes obras, a individualidade se realiza igualmente criativa em cada músico, em cada naipe, em cada voz. Cabe ao artífice condutor o sagaz conhecimento para moldar tal bloco com singularidade imaginativa e assim recriar sonoridades, enfatizando fraseados e realçando vozes e timbres que considera merecedores de destaque nos aspectos que lhe tocam. Este é o trabalho do maestro, que não reside apenas em gestos, ainda que eufóricos e entusiasmados, contidos ou serenos, ao exprimir no corpo a música que lhe sai do coração, adentra pelos ouvidos de quem se comove, transcende e igualmente ressuscita com a obra.
É um trabalho, como mencionado no início, meticuloso, exigente e incisivo sem ser draconiano, em que as páginas se dissecam para se extrair, de recônditas minúcias aos mais explícitos e clamorosos discursos melódicos, o âmago da expressão que carregam ao longo do tempo, desde que foram escritas. Parte a parte, timbre a timbre, os diálogos se perfazem entre os músicos e o regente, pelos sons e pela fala. Assim calmamente a construção se ergue pronta para inebriar os ouvintes com algo que nunca, jamais igualmente se repetirá. Exceto nas gravações que podem guardar registradas a mesma interpretação, mas, no entanto, conseguem ser transmudadas em novas sensações a cada audição.
A música tem esse dom, de comover, de nos fazer melhores, de nos transportar às paragens onde reinam o amor e os sentimentos nobres como fé, compaixão e solidariedade promovendo-nos intimamente a integralidade do ser e a vontade de ser bom.
Na oportunidade que tivemos de cumprimentar Tarmo Peltokoski, após sua inesquecível regência, aproveitamos para lhe externar pessoalmente a sensação da magnífica fusão artístico-sonora que experimentamos ao ver uma performance tão especialmente interpretada. Quando a euritmia se fez plena, confundindo-o com a música, com os músicos e com todo o admirável conjunto. Chegamos a lhe dizer: “Você não faz música, você é a própria música”. Em sua contida discrição, o sorriso esboçado de soslaio nos convenceu de que ele havia entendido nossa exata comoção. A de ver um maestro capaz de sair de si em gestos e expressões que abençoam obras, orquestra e público com o que há de mais lindo na interpretação musical: a arte que se revive recriada em cada execução.
Evidentemente tais espetáculos podem e devem ser gravados em todos os tipos possíveis de mídia disponíveis atualmente no mundo digital e cibernético. Para que resplandeça em nossa voluptuosidade interior e se perpetue sempre que vivenciarmos a música em sua perfeição estética, sinestésica, sob o divino condão de nos tornar melhores. Afinal, reiteremos: a música nos dá vontade de ser bons.