O trabalho personalizado que resulta na singular interpretação com que o regente de orquestra marca a obra que conduz vai muito além ...

Quando música e maestro se confundem

tarmo peltokoski oslo filarmonica
O trabalho personalizado que resulta na singular interpretação com que o regente de orquestra marca a obra que conduz vai muito além dos gestos a que assistimos durante a performance. A preparação na qual ele lapida e imprime à peça uma concepção particular tem início nos ensaios quando, ao conhecer os músicos, avalia potenciais individuais e coletivos para explorar os limites e objetivos de seus sentimentos musicais.

Leonard Bernstein
É razoável perceber que os espectadores comumente atribuem aos movimentos da batuta o que lhes parece mais importante na função do maestro. Mas não é. Assim fosse, um metrônomo de mesma estatura faria o papel de marcação rítmica puramente mecânica de uma regência.

Previamente cada obra é profunda e minuciosamente estudada pelos regentes que a entendem de maneira peculiar, tanto quanto nela sentem a essência congeminada por seus autores. Ainda que a partitura contenha toda a linguagem melódica e respectivas anotações do compositor, há nas páginas musicais um imenso universo criativo não explícito, e frequentemente ainda não perscrutado, descortinado. Daí não existir sequer uma sinfonia que possa ser executada duas vezes de igual maneira, embora com os mesmos instrumentistas, o mesmo regente e a mesma ambiência acústica. A música é viva como um rio que corre livre, incapaz de ser o mesmo no decurso de seu leito.

A riqueza composicional com que a arte da música é escrita, ao contar com diversos recursos tímbricos, variados tipos de sonoridade, de entrelaçamento melódico estruturado em frases que se harmonizam em vários níveis, vozes e formas distintos, justapostos em contraponto ou em planos lineares, é infinitamente grande.
Daniel Baremboim
É isto que oferece ao maestro e aos intérpretes as ferramentas de que ele precisa para esculpir determinada ideia, à imagem do espírito do autor, do estilo e da época em que a música foi composta, fazendo com que ela se multiplique, se reproduza e se transcreva ilimitadamente em novas versões a manter obras e compositores vivificados em concepções inéditas.

Por vezes, regentes descobrem nas entrelinhas dos pentagramas detalhes e dizeres melódicos não claramente explícitos que até os autores não os tenham imaginado sob tais ângulos, e possa lhes dar caráter inovador capaz de conferir à música cores infinitamente criativas. Esta é a marca do intérprete, cujo valor se mede pela busca incessante de possibilidades metamórficas que a música invariavelmente oferece aos detentores de agudeza sensorial e talento para a divina arte.

Gestualmente falando, há maestros e solistas calmos, contidos, discretos, assim como os que extravasam nos movimentos corporais o que a emoção lhes provoca. Do ponto de vista estritamente musical, daquilo que se escuta, pouco importa a performance gestual. Que digam os que têm audição apurada, quando privados da visão, ao ouvir músicas gravadas ou ao vivo. O que lhes soa é o que de verdade importa.

Gustavo Dudamel
Contudo é inevitável o entusiasmo experimentado por quem vê presencialmente regentes a conduzir óperas, concertos, cantatas e sinfonias em memoráveis interpretações marcadas não apenas pelo dom, pela capacidade, mas também pela intensidade do envolvimento corporal com a música, com a orquestra, com os músicos e a plateia.

Um clássico exemplo é o do regente finlandês Tarmo Peltokoski, de apenas 24 anos (!),a quem tivemos oportunidade de assistir, há poucos dias, na Noruega, à frente da Orquestra Filarmônica de Oslo. Entre ele e a música há notória e cristalina simbiose,
Fonte: Manila Fil. / Div.
seja auditiva, visual ou gestual, em que a aura de sentimentos voeja da partitura à orquestra, passeando, acariciando e sacolejando cada timbre, cada naipe, aos quais consegue expressar exatamente o que o comove, o que ele entende de tudo o que extraiu dos mais íntimos sentimentos do autor, muito além da partitura.

O que se observa em sua regência é o triunfante regozijo do resultado pronto, alcançado pela consubstanciação integral entre a história da obra, parâmetros conceituais e estilísticos, personalidade do compositor e a minuciosa grafia contida na escrita original, ora incorporados à alma interpretativa que lhe dá nova vida, nova roupagem, com silhueta inédita.

Ao estudar o que conduzirá, o regente se debruça nas partituras como quem lê e degusta atentamente um romance de seu escritor predileto, espelhando em sua imaginação os reflexos do que se passou na mente de quem o criou e assim experimenta nas próprias emoções a história que revive. Em cada frase, em cada diálogo descrito, em cada harmonia, é possível encontrar o que seja merecedor de destaque ou enfoque especial, que não se mostrou explícito na ideia e na execução original. Nisto reside um dos grandes valores do condutor: entrever na escrita musical nuances, detalhes, segredos, minudências, pormenores que em sua visão recebem inovadora feição e enriquecem particularmente o conjunto, seja em tessitura sinfônica, camerística ou coral. Além de, principalmente, fazer com que os instrumentistas assimilem ao longo dos ensaios a atmosfera em que as peças renascerão.


Um maestro como Tarmo Peltokoski sabe onde buscar nas entrelinhas minúcias ocultas e abstratas que talvez até estejam dentro de sua própria emoção, em segredos que se restringem a ele e ao espírito do compositor que incorpora. É nítida e comovente para o espectador a maneira como ele se lança na música ao soltar o corpo que dança e a alma que canta. Realmente impressiona!

Na inesquecível e inebriante noite de Oslo, o programa de autoria de dois grandes e dramáticos neo-românticos — um alemão e um russo — não poderia ter sido mais adequado à personalidade de um diretor de orquestra como Tarmo. As aberturas wagnerianas Tanhauser e Os Mestres Cantores de Nuremberg,
Fonte: DGWorld / Div.
o 2º Concerto para Piano e Orquestra de Prokofiev, com extasiante participação do pianista canadense de origem polonesa, Jan Lisiecki, e a Suite-Concerto O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss constituíram o idílico panorama pelo qual ele magnificamente flanou. Nos incisivos e precisos momentos de marcação, a batuta apontava para os naipes como uma “vara de condão” a encantar a plateia, a orquestra, e transmitir com extraordinária sensibilidade tudo o que conseguiu burilar ao extrair a mais pura natrita de partituras tão grandiloquentes. Era a música rediviva atravessando décadas para a instantaneidade de um ineditismo conduzido a ressuscitar obras admiráveis com o mesmo brilho de seu autor. Ainda que os talentos e a excelência da performance pairem cintilantes nos palcos musicais, o compositor merece ser sempre lembrado, honrado e reverenciado soberanamente acima de todo o espetáculo. Nada mais gratificante aos espíritos dos músicos, pois que se regozijam ao ver suas criações imortalizadas em novas técnicas de interpretação, em sonoridades e acústicas cada vez mais refinadas, quando também se sentem aplaudidos e cumprimentados.

tarmo peltokoski oslo filarmonica
Konserthus, Filarmônica de Oslo, Noruega
Mesmo que a arte da regência e da interpretação musical celebrada pelo maestros, solistas e instrumentistas fundem-se em um só bloco durante a execução de grandes obras, a individualidade se realiza igualmente criativa em cada músico, em cada naipe, em cada voz. Cabe ao artífice condutor o sagaz conhecimento para moldar tal bloco com singularidade imaginativa e assim recriar sonoridades, enfatizando fraseados e realçando vozes e timbres que considera merecedores de destaque nos aspectos que lhe tocam. Este é o trabalho do maestro, que não reside apenas em gestos, ainda que eufóricos e entusiasmados, contidos ou serenos, ao exprimir no corpo a música que lhe sai do coração, adentra pelos ouvidos de quem se comove, transcende e igualmente ressuscita com a obra.


É um trabalho, como mencionado no início, meticuloso, exigente e incisivo sem ser draconiano, em que as páginas se dissecam para se extrair, de recônditas minúcias aos mais explícitos e clamorosos discursos melódicos, o âmago da expressão que carregam ao longo do tempo, desde que foram escritas. Parte a parte, timbre a timbre, os diálogos se perfazem entre os músicos e o regente, pelos sons e pela fala. Assim calmamente a construção se ergue pronta para inebriar os ouvintes com algo que nunca, jamais igualmente se repetirá. Exceto nas gravações que podem guardar registradas a mesma interpretação, mas, no entanto, conseguem ser transmudadas em novas sensações a cada audição.

A música tem esse dom, de comover, de nos fazer melhores, de nos transportar às paragens onde reinam o amor e os sentimentos nobres como fé, compaixão e solidariedade promovendo-nos intimamente a integralidade do ser e a vontade de ser bom.

Invariavelmente, assistir à música de concerto que pulsa viva, árdega ou cândida, robusta ou delicada, portanto suscetível, vulnerável e efêmera como a própria vida, é comungar com a mais sublime linguagem, capaz de ser traduzida em segredos que nenhuma palavra consegue dizer.

Na oportunidade que tivemos de cumprimentar Tarmo Peltokoski, após sua inesquecível regência, aproveitamos para lhe externar pessoalmente a sensação da magnífica fusão artístico-sonora que experimentamos ao ver uma performance tão especialmente interpretada. Quando a euritmia se fez plena, confundindo-o com a música, com os músicos e com todo o admirável conjunto. Chegamos a lhe dizer: “Você não faz música, você é a própria música”. Em sua contida discrição, o sorriso esboçado de soslaio nos convenceu de que ele havia entendido nossa exata comoção. A de ver um maestro capaz de sair de si em gestos e expressões que abençoam obras, orquestra e público com o que há de mais lindo na interpretação musical: a arte que se revive recriada em cada execução.

Evidentemente tais espetáculos podem e devem ser gravados em todos os tipos possíveis de mídia disponíveis atualmente no mundo digital e cibernético. Para que resplandeça em nossa voluptuosidade interior e se perpetue sempre que vivenciarmos a música em sua perfeição estética, sinestésica, sob o divino condão de nos tornar melhores. Afinal, reiteremos: a música nos dá vontade de ser bons.

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  1. Anônimo5/5/24 07:35

    Mais que uma aula sobre a verdadeira função do maestro, seu texto nos relata uma riquíssima e emocionante experiência humana e cultural em Oslo, confirmando-nos os imensos méritos pessoais do cronista. Parabéns, Germano. Francisco Gil Messias.

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    1. Gratidão a você, Gil. Pela leitura sensível e consideração de sempre. Um ótimo domingo para vocês 😍

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  2. Helder Moura5/5/24 11:36

    Seu texto, absorvendo todos os minuetos e minudências literárias, nos faz melhor, caro amigo Germano, tanto quanto a música é transformadora e, sem ela, a vida é apenas ruído

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    1. Conheço bem sua sensibilidade para estes reinos sublimes, amigo. Obrigado!

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  3. A música nos dá vontade de voar para o céu. É uma alegria poder aprender tanto com você. Um novo Universo surge de suas palavras. Obrigada. Ângela

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    1. Que possamos ir a este "céu" juntos, sempre! Obrigado professora amiga.

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