Um vento forte, em lufada de segundos, sacudiu a rede que armei na varanda para o cochilo vespertino, costumeiro, justo e merecido. O susto que tive agravou-se com o baque de dois varões metálicos. Dias antes, quando ainda não haviam sido trocados por trilhos mais modernos, sustinham a cortina da sala. Mas, agora, esquecidos, verticalmente, num cantinho de parede, foram ao chão com um barulho dos diabos.
E a coisa não ficou nisso: algo também caiu no canteiro de obras em frente ao meu prédio onde os Adventistas do Sétimo Dia erguem um templo e uma escola. Já escanchado na rede, como se estivesse no lombo de um cavalo prestes ao galope, vi os dois gatos tão assustados quanto eu. Ambos tinham os olhos fixos nos galhos de uma algaroba que, na calçada oposta, balançavam de modo então nunca visto. Debaixo deles, um alarme de carro disparou.
Tudo aconteceu, assim, num átimo, sob um céu azul, sem nuvens, no meio de uma tarde morna e sem vento, a não ser aquele soprado, repentinamente, com força assombrosa, não sei de onde nem por qual razão. Decidi ficar atento ao noticiário. Se aquilo bateu daquele jeito na minha varanda, pode ter danificado alguma coisa à beira-mar, dez quarteirões mais à frente, área de onde a ventania corre sem a barreira dos edifícios que me atrapalham a visão das auroras e do nascer da lua.
Sozinho, em decorrência de viagem da mulher e do filho para visita aos parentes do Rio Grande do Norte, não pude trocar impressões acerca do ocorrido, tão subitamente. Também não retomei o sono, pois o vento o levou.
Acalmei os gatos, busquei um suco e me pus a pensar na agonia dos que habitam terras dadas aos tremores, dilúvios e furacões. Se um ventinho merreca me assusta, imagine o quanto me apavoraria um ciclone, ou um terremoto. Um pode carregar pelos ares gente, bichos e casas. Outro pode abrir fendas no chão e derrubar tudo sem dó nem piedade.
Temo as reações da Natureza aos malfeitos da humanidade. Quando menino, morador de beira de rio, angustiava-me a ideia do arrombamento de Boqueirão, a represa que até hoje segura as águas do Paraíba. Dista 140 quilômetros da pequena Pilar, onde eu e os meus vivíamos. Mas, se aquilo estourasse encobriria nossas casas, antes de dissolvê-las. Era o que eu e os outros meninos ouvíamos dos adultos a cada enchente do rio em cujos poços, em dias de águas poucas e paradas, o grande José Lins do Rego adquiriu esquistossomose.
Com o paredão resistente há 67 invernos, desde que foi inaugurado no município do qual tomou o nome pelo qual é mais conhecido, Boqueirão (na verdade, Açude Epitácio Pessoa) não impediu, em 1985, que as águas do Paraíba levassem a ponte de Pilar, metade da cidade de Cruz do Espírito Santo e os canaviais de Santa Rita, com prejuízos enormes para uma economia que se afoga até em tempos secos.
Ocorre-me, agora, que a delação do amigo Coruja livrou o menino José Lins do deboche de um colégio inteiro. Ele havia dito que podia atravessar aquela correnteza a nado, em Itabaiana, local dos seus estudos primários, porque assim o fazia em Pilar, onde o rio seria muito mais largo. Mentia duas vezes: o Paraíba faz-se mais estreito nas terras do Corredor, o engenho então pertencente a seu avô materno. Além disso, aquele pirralho fugia das enchentes como o diabo da cruz. De todo modo, a palmatória do Professor Maciel – a cujo conhecimento por sorte chegara a história desse desafio – o livrou da desonra. Isso e, ainda, a proibição aos banhos dos sábados, com o restante da turma.
Com o deputado Chiquinho do Pilar, não. Com este a história foi diferente. Ainda muito jovem e antes, portanto, do mandato parlamentar, atravessou a nado um Paraíba furioso, porque o canoeiro Petório, quando a ponte ainda inexistia, teve medo de botar a canoa no rumo da estação de trem onde o contratante apaixonado pretendia despachar sua cartinha à noiva Oza, moradora de Timbaúba, no Estado de Pernambuco.
Pois bem, Chiquinho pôs a carta e a roupa num saco plástico, amarrou tudo ao pescoço, entrou nas águas revoltas e ressurgiu na outra margem quando todos o supunham morto. A cena está assim descrita em “O legado de um homem”, o livro há pouco tempo lançado e no qual a autora Magdala Cavalcanti de Melo exalta a memória do pai.
Dizia eu dos meus temores às reações da Natureza. Isso pode incluir tanto a estiagem inclemente quanto as enchentes absurdas do Paraíba e outros rios. Também, assim, o aguaceiro que hoje invade cidades e fazendas de um Rio Grande do Sul em penoso estado de calamidade pública. Nessa escala e com essas repetições, as catástrofes resultam da degradação do planeta, a crer-se no ramo da ciência que estuda o assunto.
Eis, então, o custo doloroso do desmatamento amplo e generalizado, do incontido assoreamento de leitos e do aquecimento global agravado pela poluição atmosférica. Desgraçadamente, os riscos de danos insanáveis, perdas materiais e humanas são agudizados, ainda, pela imprevidência administrativa que desmerece as previsões e os planos de prevenção de tantas e tantas tragédias.
O ventinho de quem eu e meus gatos tomamos um tabefe não é nada perto daquilo que desabriga, fere e mata parcela crescente dos gaúchos. Penso nos seus desesperos, sofro com suas angústias e seus medos. E peço que não falte a proteção divina àquela gente, pois, ao que parece, esta é a última que lhe resta. Ah, sim, também peço perdão a Érico Veríssimo pelo uso do título da mais consagrada das suas obras.