Ouvi essa história de um amigo e a reconto com as licenciosidades da crônica. Mal os negócios se recuperavam da crise decorrente da pandemia que tangera a clientela da sua e de tantas outras lojas, a mulher apareceu com a novidade: eles estavam para receber uma sobrinha, seu marido canadense e um casal de filhos adolescentes, estes últimos com bom domínio do Português. O aviso viera em cima da hora por telefonema da cunhada residente em São Paulo. Ela falava da filha, do genro e dos dois netos. Saídos de Toronto,
os visitantes pretendiam desembarcar, primeiramente, no Recife com o endereço dos parentes nordestinos.
Mercadoria estocada, saldo bancário magro e contas a pagar não combinavam, evidentemente, com despensa doméstica cheia nem com mesa farta e variada. Antes que o pânico se instalasse, outro telefonema tranquilizava meu amigo. A cunhada, desta vez, exigia que ele e a irmã não se preocupassem com a comida. A filha andava saudosa do cuscuz com ovo, da macaxeira com galinha, enfim, da mesa regional simples e corriqueira. E queria mostrar ao marido e aos dois rebentos as frutas e os pratos dos quais sempre falava.
O pouso, no Recife, deu-se à noite. Tia e sobrinha se abraçaram com risos e lágrimas. A meio caminho de João Pessoa, um dos garotos reclamou da fome. Minutos depois, sentavam-se todos n’O Rei das Coxinhas, restaurante de beira de estrada e de tradução difícil para os que venham de fora. Mesmo a sobrinha brasileira havia esquecido de que naquela massa não entrava batata, mas farinha de trigo cozida em caldo de galinha, moldada em forma de coxas e recheada com a carne dessas aves temperada a capricho, antes da fritura. Naquela mesa, os recém-chegados começavam a suspeitar do desembarque no paraíso.
O cansaço pôs todo mundo na cama depois do cuscuz de milho, ovos e queijo de coalho fritos. A impressão da chegada ao céu seria reforçada, na manhã seguinte, pelas águas mornas da Praia do Bessa então sob um sol mal compreendido. “Não dá para acreditar que isso seja inverno”, comentou o canadense. Seu verão, acrescentou, costumava ser menos claro e mais frio.
Uma orla de prédios ainda baixos e a cidade com a mesma exuberância vegetal, no que pesasse o transcurso dos anos, surpreendiam a brasileira. Tanto quanto a espantavam algumas das mais elevadas edificações do País instaladas no Altiplano do Cabo Branco, o bairro que ela somente então conhecia.
Aqueles quatro se empanturram com o pirão preparado com carne de terceira, ossos, legumes, verduras e banana d’água. O deslumbramento daquela gente com as coisas mais simples fazia a anfitriã perder o acanhamento. E haja batata doce, picadinho, bolo de fubá, suco de goiaba, cajá e caju.
A farofa rendeu boa conversa do meu amigo com o marido da sobrinha ali ocupada na tradução. Contou ele que a mandioca estaria para a segurança alimentar dos brasileiros como a batata está para a dos norte-americanos e europeus. Cozinhada em água e sal e oferecida com peixes e carnes compunha, por aqui, quase todas as mesas nas quatro direções da Rosa dos Ventos. Se ralada, servia ao preparo das farofas, tapiocas, bolos e mingaus.
A programação junina acertada com os demais parentes antes do informe daquela visita foi mantida à risca, até para que todos se conhecessem. Dois dias depois, eles estariam no sítio da sogra do meu amigo situado quase no ponto onde os municípios de Santa Rita e Cruz do Espírito Santo emendam os canaviais.
Confusas, algumas expressões não atrapalhariam as conversas. Ali, os estrangeiros souberam que a carne avermelhada e o milho amarelo podem ser tomados por verdes. Os dois adolescentes puseram, pela primeira vez, os olhos em árvores das quais colheram as frutas, tiraram leite de peito de vaca, montaram cavalos e mergulharam em açude. A garota olhou para as jacas com certo receio, até ter num prato os bagos limpinhos, dourados e sem os caroços.
A infinidade de laranjas, abacaxis, melancias e frutos que jamais supunham existir era, para eles, coisas de ricos. Assim, também, o exagero de doces, canjicas e pamonhas. Foram informados de que estavam em tempo de bonança, o das chuvas.
O sanfoneiro chegou àquela varanda quando anoitecia. Acompanhava-se do moço do zabumba e do tocador de triângulo. Logo mais, a casa se encheria com tios, primos e amigos. O pai daqueles adolescentes, e eles mesmos, aprenderam que podem abraçar, beijar e serem beijados nas bochechas em cada apresentação a desconhecidos. A mãe assim o fazia sem a menor inibição.
E começou a festa. O forró, definitivamente, não era coisa para os que tinham os pés fincados em terras geladas. Já a mãe, na dança com os parentes, surpreendia e encantava o marido e filhos com seus passos ritmados e seguros. “Não perdeu o jeito”, ela ouviu do avô, dono da casa, a quem respondeu: “Não dá para esquecer. É como andar de bicicleta”.
A coisa melhorou na hora da quadrilha, expressão da dança nordestina em compasso de marcha. Bastava, então, arrastar os pés nos “alavantus” e “anarriês”. Dizem os entendidos nessa matéria que isso advém do francês “en avant tous” e “en arrière”, ou seja, “para frente” e “para trás”, termos assim popularizados. E todos logo se entenderam.
Houve quem notasse, três dias depois – quando do embarque daquela família para o abraço nos parentes do Sudeste – os cochichos e os olhos lacrimejantes de dois irmãos e duas irmãs, primos em quinto grau, condição em que os namoros podem ser permitidos porquanto longe da consanguinidade. Dois deles tinham sotaque forte, falavam com a língua enrolada.
“O que teus garotos acharam de São Paulo?”, perguntou por telefone a mulher do meu amigo à sobrinha que ali, então, já arrumava as malas para a viagem de volta ao Canadá. Resposta da moça: “Não se impressionaram. Para eles, todas as cidades grandes se parecem. Mas não se cansam de falar dos parentes e das coisas do sítio. Acho que estão namorando. Não saem da internet”.