Lá pelos meus dez anos, um amigo ocasional, camaradinha um pouco mais velho chegado de Manaus para as férias com os avós, nossos vizinh...

O poder dos nomes

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Lá pelos meus dez anos, um amigo ocasional, camaradinha um pouco mais velho chegado de Manaus para as férias com os avós, nossos vizinhos, perguntou-me onde poderia comprar alka-seltzer a fim de se livrar da azia. Não faria a menor diferença se a pergunta me fosse dirigida em grego. Sabia lá eu o que diabo significavam essas duas coisas... Minha mãe veio em meu socorro. Quis saber do garoto se era muito forte o queimor que ele sentia e,
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à falta do alka-seltzer, ofereceu-lhe sal de frutas.

Pronto, matei a charada. Aquele menino de fala mansa, sotaque bonito e palavras bem escolhidas, procurava remédio contra queimadeira. Memorizei os dois termos. Aquilo me parecia coisa de gente fina, bem-educada, distinta: azia e alka-seltzer.

Envergonha-me confessar que, desde então, tenho uma certa queda por alguns termos médicos e farmacológicos aplicados a moléstias e medicamentos. “Flogoral”, isso é primaveril, é quase um poema. “Doril” poderia ser nome de ator de teatro. “Doralgina”, por sua vez, bem poderia cantar boleros. E o que dizer de “Vic Vaporub”? Isso não é bom nome para um mocinho do faroeste, cowboy destemido e rápido no gatilho?

Houve o tempo em que, pelo nome, me agradaria pegar rubéola. Anitta é nome de mulher bonita, real. E é, também, um antiparasitário indicado no tratamento de gastroenterites. Aliás, o que tem “gastro” no começo não deveria ser coisa ruim. Perguntem aos gastrônomos.

E as síndromes, então? Síndrome de Cinderella (condição psicológica em que a mulher teme a independência), Síndrome de Rapunzel (mais rara, aplica-se ao costume que alguns têm de arrancar os cabelos),
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Síndrome de Otelo (a do ciúme doentio), Síndrome de Peter Pan (que acomete, é claro, o sujeito que se recusa a crescer). Penosamente, as definições estragam cada inspiração.

A Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico conta que há muita arte por trás da ciência sempre que a questão se prenda aos nomes dos medicamentos. As empresas, neste caso, tratam de mexer com a emoção da clientela. O Viagra, por exemplo, ganhou nome que promove a virilidade, a vitalidade, o vigor. A propósito, o Conselho Federal de Farmácia, cujo portal eu também consultei, traz o seguinte título para uma nota sobre as vendagens disso e dos similares pela Internet: “Medicamento para disfunção erétil lidera levantamento (êpa!) dos mais vendidos on line no Brasil”.

Pensando bem, isso é compreensível. Comprar coisas desse tipo no balcão da farmácia é expor uma situação pessoal sequer revelada ao padre, no confessionário. Até porque já não seria pecado, mas castigo. Imaginem, então, na cestinha onde balconistas (substantivo de dois gêneros) dispõem os remédios para o pagamento pelo freguês à moça do caixa, com ou sem as filas de curiosos nunca faltosos em todo e qualquer ambiente.

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É grande o poder dos nomes, minhas e meus camaradas. Podem virar sinônimos de certas linhas de produtos. Que o digam a gilete, o chiclete, a xerox, a kodak e por aí vai. Daí, os investimentos altíssimos da indústria na turma da criação, aquela que ganha o peso em ouro para o invento de títulos, rótulos e embalagens. A da área farmacêutica, evidentemente, não ficaria fora desses esforços para a superação, caso a caso, da enorme concorrência.

É bom dizer, antes que eu me esqueça, que as farmácias, elas mesmas, cresceram e se modificaram no ritmo do progresso científico e tecnológico experimentado, mundialmente, pelos laboratórios do ramo. Têm gôndolas que o farmacêutico Israel, no Pilar da minha infância, jamais suporia existir em algum momento do futuro. E têm produtos nunca imaginados por gente como ele. A lista, interminável, inclui escova e pasta de dente, pente, mamadeira, chupeta, barra de cereal, doce, sabonete, shampu, perfume, laticínio, meia,
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lenço, calcinha e preservativo para os movidos, ou não, a viagra e que tais.

São estabelecimentos que hoje se organizam em redes e sistema de franquia para matar, um a um, todo santo dia, o empreendimento individual, a farmacinha da esquina com prateleiras e balcões assemelhados aos do querido e saudoso farmacêutico da minha cidade.

Farmacêutico, sim, na mais digna e elevada expressão do termo. Bem lembro dos seus preparos, da balancinha com pêndulo, dois pratos e uma série de pesos incrivelmente diminutos, dos frascos e provetas para medição de substâncias diversas imprescindíveis à medicação de crianças e adultos com dosagens corretas e honestas.

O menino que eu fui não gostava de Seu Israel apenas quando ele despachava para minha mãe a Emulsão de Scott, nome também bonito dado ao pavoroso óleo de fígado de bacalhau. Eu até suportava, com certa resignação, o danado do Merthiolate com seu fogo dos infernos em cima de feridas resultantes, foi não foi, das quedas no futebol, ou da bicicleta. A tal Emulsão, invento de terrível sabor debitado ao americano John Smith, na Nova York de 1830, era mais insuportável do que aquela pimenta na carne aberta.
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Li que chegou ao Brasil em 1908 como fortificante para crianças em fase de crescimento. Eu não conheci uma que não fugisse léguas daquilo. Também soube que esse troço, inscrito na lista de remédios mais antigos do mundo, ainda pode ser encontrado, atualmente, por mães zelosas, em garrafas de PVC. E que o rótulo traz o mesmo pescador com o bacalhau às costas: aquele bicho quase do tamanho dele.

Eu adorava Seu Israel quando o despacho era o do Biotônico Fontoura. Contam-me que isso também ainda existe, mas saiu da categoria de medicamento para entrar na de suplemento alimentar. Seja como for, também perdeu o velho encanto: o álcool etílico proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e, assim, retirado, em 2001, da fórmula original.

Acho que acontece a todos: o avanço dos anos nos traz essas saudades. Agora mesmo, eu toparia um benzetacil nos glúteos (como diria o menino de Manaus), se me fosse aplicado no quartinho da injeção do meu velho farmacêutico. Essa coisa dói tanto que mereceu uma música composta
pelo formidável João Bosco. Eis alguns versos:

Mas na verdade tenho que dizer Tem uma dor tão vil que dói só de pensar Você não sabe, amigo, o que é levar um benzetacil naquele lugar Esparadrapo, calminex, gelo boldo, sal de frutas, cafuné de mãe. Não tem nenhum remédio para essa dor maldita Vira, abaixa as calças, entrega a Deus. Amém.

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  1. Uma saborosa viagem no tempo para lembrar tanta coisa que ficou para trás. Parabéns, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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    1. - Grato, amigo. E um abraço de Frutuoso.

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